segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Pastores e Magos: Lucas 02:08-20


Lucas diz em seu evangelho que no momento do nascimento de Jesus havia na região próxima de Belém - nos campos próximos, diz ele - alguns pastores que cuidavam de seus rebanhos (02:08), talvez como costumeiramente faziam. Daí surge um anjo, envolto em luz, que dá medo, mas que traz a eles a notícia do nascimento de Jesus, “as boas novas de grande alegria” (10), para eles e para todo o povo. Depois que os anjos vão embora - depois do primeiro apareceram muitos outros dizendo “glória a Deus nas alturas e paz na terra a quem ele quer bem” (13 e 14), Lucas diz que os pastores resolvem ir ver o menino, e vão (15 e 16). Correndo vão a Belém, e lá encontram José, Maria e o menino Jesus, como dito pelo anjo, envolto em pano e deitado na manjedoura.

Mateus - e aí nunca vamos saber se são os mesmos ou se são outros - diz que no momento do nascimento de Jesus, magos vindos do oriente chegaram a Jerusalém, procurando pelo menino Jesus. Vieram guiados por uma estrela que lhes apontava o caminho do nascimento do novo rei dos judeus: “onde está o recém-nascido rei dos judeus?” (02:01). A estrela então os guia até o local exato do nascimento de Jesus (09). Diz o verso 10 e 11: “Quando tornaram a ver a estrela, encheram-se de júbilo. Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.”

Como eu disse, fica difícil precisar se Lucas e Mateus estão falando da mesma experiência ou se estão contando acontecimentos separados, diferentes. É difícil saber se os magos, vindos de uma terra distante, são os pastores, moradores e trabalhadores dali mesmo, da região. Pois os magos, descritos por Mateus, eram reis, certamente poderosos em conhecimento (são astrólogos), sabedoria e posses - se eram três eu não sei. Já os pastores, descritos por Lucas, eram pobres, trabalhadores incansáveis numa tarefa árdua de encontrar comida e água para seus rebanhos numa terra árida e perigosa. Ainda há o fato de os magos terem sido guiados por uma estrela, símbolo do conhecimento científico que eles possuíam, e os pastores por um anjo, símbolo de um rico imaginário religioso que a eles pertencia.

No entanto, ambos, pastores e magos, Lucas e Mateus, estão diante de um encontro com Jesus. Eles esperaram por ele, buscavam por ele, e, finalmente, o encontraram. A nobreza, guiada pela sabedoria, pela leitura precisa das estrelas, dos astros, doadora de presentes custosos, no encontro com Jesus se dobrou e reconheceu o menino (Mateus 02:11). O comum, guiado pela necessidade da fé, sem nada para oferecer, no encontro com Jesus também se dobrou e também reconheceu o menino (Lucas 02:17-20). Era ele. O Cristo menino, em seu Natal, sem dizer palavra nenhuma, em seus primeiros encontros, já ilumina os caminhos, de ricos, sábios e poderosos, bem como da gente comum.

Aquela luz é o que agora ilumina. A luz do menino. É Natal. Os magos, vindos do oriente, trazem não apenas presentes, mas trazem também a esperança de encontrar aquele que pode mudar todos os caminhos, não só o rei dos judeus, mas também aquele que vai inaugurar o “Reino dos Céus”, que vai aproximar em vez de distanciar, que vai aplainar em vez de impossibilitar, que vai criar justiça e não mais opressão. Ele vai mostrar uma nova forma de ser senhor; de usar da sabedoria, justa e direta para aqueles que precisam de seu ensinamento; de usar do poder, em benefício dos outros e não de si mesmo; de usar da força, que não mais será para machucar, mas sim para criar alívio e paz.

Os pastores, vindos dali mesmo, vieram de mãos vazias, mas cheios também de esperança, esperança de que seus dias de trevas fossem transformados em luz. Eles queriam o fim injustiça, o fim da opressão, o fim da tristeza de ser quem eram, o fim de uma vida vazia que girava ao redor de um mesmo e infinito descaminho. Eles queriam boas notícias, notícias de paz e alegria, “boas novas” em meio a tanta coisa ruim que poderia ser compartilhada. E aquele menino era isso tudo. Para os magos e para os pastores o menino se fez luz em meio às trevas. João mostra isso muito bem: em Jesus [...] as trevas vão passando, e já brilha a verdadeira luz” (I João 02:08).

Agora eu não sei se vai ser a sua sabedoria e o seu conhecimento, ou se vai ser a sua necessidade de fé que vai conduzi-lo ou conduzi-la até o menino Jesus. Se vai ser a estrela ou o anjo, não importa. Mas se você for conduzido até lá - em verdade se você se deixar ser conduzido, seguir a estrela, ouvir o anjo - você vai se deparar com aquele que, sem palavras, pode mudar todos os seus caminhos. Pois todo o verdadeiro encontro com Jesus muda tudo. “Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, [...]” (Lucas 02:20). “Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram” (Mateus 02:11). Não é possível sair igual. O menino é a luz.

Neste Natal encontre-se com ele, veja-o e transforme-se. Tenha esta esperança: o menino envolto em pano e deitado numa manjedoura pode fazer de você alguém diferente. Ele pode tirar você do desespero e da preocupação e colocá-lo num lugar de paz, de onde nada nem ninguém pode te arrebatar. Ele pode arrancar você da incerteza, da dúvida e do medo, e colocá-lo no ambiente da fé, onde tudo é possível. Ele pode tirar você das trevas da sua vida e conduzi-lo à sua maravilhosa luz. É o menino. É a luz. É Natal.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Espera e Esperança: Lucas 02:22-40

Pouco tempo depois do nascimento de Jesus, ainda como uma criança recém nascida, ele, segundo o Evangelho de Lucas, para cumprir muito daquilo que já havia sido anunciado pelas escrituras, pelos profetas, passa por dois momentos de encontro - ele precisa se encontrar com algumas pessoas. E esses são dois encontros marcantes em sua história, momentos para pontuar. Mas, lendo Lucas, vemos que são marcantes principalmente e de forma muita especial para as personagens que fizeram parte deles. O primeiro é com os pastores (de Lucas) ou com os magos (de Mateus), que se deu, conforme os evangelhos, dentro do contexto de seu nascimento, como recém nascido ou como uma pequena criança. É quando ele ganha os seus primeiros presentes. E o segundo encontro é o que lemos, com Simão e Ana, no dia de sua consagração. 

Segundo Lucas, depois do cumprimento dos dias de purificação, conforme a lei, José, Maria e Jesus deixaram Belém, vilarejo próximo à capital Jerusalém, e foram para lá, para, também, conforme a lei, consagrar o menino Jesus a Deus, é o verso 23: “como está escrito na Lei do Senhor: "Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor"”. Ali eles oferecem o sacrifício requerido, duas rolinhas ou duas pombinhas, oferta e sacrifício de gente pobre, conforme eles eram, conforme era previsto. Tudo foi feito conforme a antiga lei, a lei de Moisés, conforme os costumes do povo, conforme tinha que ser feito. O que provava a preocupação dos pais de Jesus com o cumprimento das prescrições, e também a participação deles na comunidade de fé deles. Eles fazem parte, são parte, cumprem com a parte deles. Só depois disso tudo, da consagração comum, aparecem Simão e Ana (personagens exclusivos de Lucas), que vão se encontrar com Jesus, e que, nesse encontro, serão profundamente marcados. Aqui começa nosso caminho em reflexão.

É difícil identificar Simão e Ana, num primeiro momento. Simão talvez fosse um sacerdote do baixo-clero do templo de Jerusalém, um sacerdote sem muita importância, que estava ali exatamente para receber e atender os que a ele fossem comuns, gente também sem muita importância, como a família de Jesus, gente simples, gente comum. É Simão que o toma nos braços e ora, versos 28ss. No entanto, Lucas não diz que ele era sacerdote. Apenas diz que ele era “justo e piedoso” (verso 25), e que “esperava”. Por outro lado, talvez Simão fosse um tipo de sábio – ser justo e piedoso era característica dos sábios antigos, que ficava por ali para ouvir as pessoas e as aconselhar conforme a lei e a vontade de Deus. Sua idade avançada o ajudava nisso, pois, naquele tempo, diferente de hoje, uma voz mais velha era, na maioria das vezes, escutada. É um homem piedoso, de uma espiritualidade sensível. Segundo o texto ele é impelido pelo Espírito Santo para ir ao templo encontrar-se com Jesus (verso 27). A outra era a Ana, profetisa. Ela é, conforme o texto, “filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era muito idosa, tinha vivido com seu marido sete anos depois de se casar e então permanecera viúva até a idade de oitenta e quatro anos. Nunca deixava o templo: adorava a Deus jejuando e orando dia e noite” (versos 36 e 37). Dentro do costume daquela época, a mulher que ficasse viúva precisa de um homem para protegê-la. Assim, ou voltava para a casa do pai, ou ficava sobre a guarda de um filho homem, geralmente o mais velho, ou se casava outra vez, o que era raro, ou ia viver no templo, para trabalhar e ser sustentada pelos serviços do templo, foi o que a Ana fez. Ela é também um tipo de conselheira, provavelmente de mulheres e mães. É uma velha sábia. Piedosa e devota. Torna-se ali a primeira anunciadora de Jesus, a primeira pregadora: “deu graças a Deus e falava a respeito do menino a todos os que “esperavam” a redenção de Jerusalém” (verso 38).

Por outro lado, se é difícil identificar quem são Simão e Ana, é fácil perceber o que eles são, são símbolos de uma espera que acabava ali. O Jesus menino é ali, também e num primeiro momento, um fim. Lucas foi de uma felicidade incrível quando escolhe como texto, para o texto, para sua leitura do Jesus menino que vai terminar um ciclo de espero, dois velhinhos, Simão e Ana. Não há melhor exemplo de espera do que uma pessoa idosa. Eles estão ali, Simão e Ana, conscientes de seu mundo, conhecedores de suas histórias, viram e viveram tudo aquilo, e ainda estavam vendo e vivendo. É um lindo exemplo. Eles estiveram ali por tanto tempo, e esperavam. A fala do Simão também é linda: "Ó Soberano, como prometeste, agora podes despedir em paz o teu servo. Pois os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo" (versos 29-32). Simão tem plena consciência, sua espera acabou. Enquanto isso, a Ana, convida outras e outros que também esperavam para ouvir do menino: “falava a respeito do menino a todos os que esperavam [...]” (verso 38). Talvez dizendo: "a nossa espera acabou". O Jesus menino nos braços de Simão e Ana, dois idosos símbolos de uma antiga espera, torna-se para eles, para muitos os outros lá, e para muita gente ainda aqui, que ainda vivem a angústia da espera, um fim, um acabou, não é mais preciso esperar. Mas não foi só isso, e não é só isso. Quando a espera de Simão e Ana acaba, com o encontro deles com Jesus, algo também começa, ou melhor, nasce. Nasce junto com Jesus, nasce junto com o primeiro Natal, a esperança.

Com toda a certeza Simão e Ana não viram o que Jesus fez, não viram o que aconteceu, o que foi dito por ele, o que ele ensinou e deixou, os milagres, as curas, as palavras, não viram nada além do menino. Mas isso não tirou deles a alegria do momento, acabou, nem a certeza de que a sua espera tornou-se ali uma esperança real.

Em breve vamos nos encontrar com o menino da manjedoura, mesmo que de forma simbólica no dia de Natal. Olhar para ele, e ver nele o fim de nossa espera. Pois olhar para o menino Jesus é desconstruir em nós toda a necessidade daquilo que esperamos, é diminuir as importâncias dadas ao que é e se mostra pouco, é diminuir e desfazer os sonhos vazios. É ver que nele tudo o mais diminui e desaparece, e de que nele o todo se faz e se faz sempre novo. O que ficou para trás ficou para trás. Jesus é o fim da nossa espera. Mas é também mais do que isso. Pois olhar para o menino Jesus é entender e se preencher do novo, é o começo de novo tempo, esperança. É ver começar ou ver nascer a esperança. Para você, para mim, para todos. É redescobrir os sonhos, rever e redescobrir a vida, mudar ou converter os valores, criar e recriar as forças para poder continuar. É ver que o difícil se faz fácil, que o doloroso e o que faz doer – o que machuca – tem cura, que o choro tem consolo, que a vida tem solução, apesar de tudo. Em Jesus, mesmo ainda menino, muita coisa termina (basta agora a você determinar o que termina) e muita coisa começa (agora basta a você reconstruir a sua esperança ou seu recomeço). 

domingo, 9 de dezembro de 2012

Cântico Novo: Salmo 96

"Cantai ao Senhor um cântico novo" (na versão que eu leio, NVI: "Cantem ao Senhor um novo cântico"), essa é frase que fica quando lemos o Salmo 96, ou é a frase que vem quando pensamos no Salmo 96. Pois ouvir ou lembrar da frase: "cantai ao Senhor um cântico novo", é também lembrar do Salmo, mesmo que não se lembre bem de qual Salmo é, pois a mesma expressão também aparece no Salmo 40 (de uma forma diferente) e no Salmo 98 (Ipsis Litteris). Ouvir ou lembrar da frase é também lembrar do cântico que cantávamos. Lembro-me dele pelos "Vencedores por Cristo" (fiquem tranquilos porque eu não vou arriscar cantar). E fica porque é um negócio bonito: "um novo cântico". Fica porque, além de bonito, causa entusiasmo. É algo que gera em quem ouve a frase um certo sentimento de alegria. Faz a gente sorrir. Não dá para explicar, só é possível sentir. Pois é um cântico, é novo e é para cantar, e cantar ao Senhor. É um convite: "cantem", "cantem ao Senhor um novo cântico". Mas e talvez fique - e aqui começa a minha leitura do Salmo - porque nos apresente o "novo".  

A gente está no fim do ano. Dezembro é um mês de transição. É como se fosse possível deixar as coisas velhas para trás (não digo que não dá e nem digo que dá) e fazer tudo diferente, melhorar muita coisa, mudar muita coisa, recomeçar muita coisa, começar muita coisa, terminar muita coisa, mas tudo sempre - se possível - de uma forma diferente. Experimentar o "novo" é algo sempre muito bem-vindo. Pois quase sempre "o novo" cria sentido, cria perspectivas, cria caminhos, cria ânimo, cria e recria sonhos, esperanças. O novo renova. Principalmente quando o que ficou para trás na vida da gente era tristeza e peso. E, em verdade, em grande parte, é sobre isso que os salmistas estão falando.        

É perceptível nos Salmos, no 96 que lemos, no 98 e no 40, que o cântico novo é um cântico de um tempo novo. Em verdade, um cântico novo só é possível dentro de um tempo novo. No Salmo 40 o salmista começa dizendo: "Coloquei toda minha esperança no Senhor; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito de socorro". O que significa que o que havia antes era um tempo de sofrimento, tanto para ele, o salmista, quanto para o seu povo. No Salmo 98, até o verso 03, o salmista fala de coisa maravilhosas que foram feitas pelo Senhor (verso 01), um braço santo que conduz à vitória (verso 01), justiça recriada (verso 02), a fidelidade e o amor que o Senhor se lembrou que tinha com seu povo (verso 03). Antes daquilo o tempo certamente era diferente daquilo que o salmista está pintado. Só pode ser conduzido à vitória quem antes estava perdendo, se a justiça está sendo feita é porque antes o que estava acontecendo era injusto, se Deus se lembrou de seu amor e fidelidade é porque este amor e fidelidade não estavam sendo sentidos. No Salmo 96 o que é proclamado é a "salvação" (verso 02). Ele reina, ele julga, ele faz justiça (verso 10). O tempo agora é outro, é novo. Salmo 40: 02-03: "Ele me tirou de um poço de destruição, de um atoleiro de lama; pôs os meus pés sobre uma rocha e firmou-me num local seguro. Pôs um novo cântico na minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus". Um tempo novo que exigia um cântico novo, não mais de lamento, mas de alegria.

Talvez por isso o salmista nos convide de uma forma tão entusiasmada. Se o tempo é novo cantem de forma nova. Cantem vocês, cantem todas as nações, cantem todos os povos, cantem todas as gentes, cantem até mesmo os céus, a terra, o mar, os campos, as árvores, as florestas (verso 11 e 12). Tudo deve cantar no entusiasmo do tempo que se faz novo e, principalmente, sem sofrimento. E isso não se explica, pois não pode ser entendido, apenas vivido. Em Apocalipse 14:03 há algo muito interessante quanto a isso: "Eles (os 144 mil, representação da totalidade daqueles e daqueles que estavam sofrendo o martírio no período da perseguição do final do primeiro e início do segundo século) cantavam um cântico novo diante do trono, dos quatro seres viventes e dos anciãos. Ninguém podia aprender o cântico, a não ser os cento e quarenta e quatro mil que haviam sido comprados da terra". Pois o "cântico novo" não se aprende, não é "ensinável", é apenas experimentável. Só eles podiam aprender o sentido de um "cântico novo" num tempo novo. Pois só eles haviam experimentado o antes para agora poder viver o depois.           

O novo está aí, falta pouco. O novo está aqui. O tempo é novo, se fez e se fará novo. Mas, antes de cantar é preciso compreender que o novo, antes de ser um tempo, antes de ser novidade, antes de se apresentar como começo, recomeço ou solução, o novo é um "sentimento". Começa por dentro antes de ser visível por fora. Mexe por dentro antes de mexer por fora. Faz novo uma porção de coisas dentro da gente antes de fazer novo uma porção de coisas fora da gente. Faz nova a vida antes da vida se tornar nova. Do contrário, tudo será igual apesar de ser diferente, tudo será o mesmo apesar de ser um outro tempo, o novo ano será tão velho quanto todos os outros que passaram, e o cântico, num outro ritmo, com outra melodia, com um outro tom, e talvez um letra nova, continuará sendo o mesmo.

Um cântico novo começa em um tempo novo, um tempo novo começa em um sentimento novo, um sentimento novo começa no Cristo que sempre faz nova todas as coisas. E me parece que o Salmo 96 e o 98 estão cheios disso, desse entusiasmado convite. "Cantem ao Senhor um novo cântico" não é apenas a troca de um cântico de lamento por um cântico de alegria, não é apenas a percepção de um tempo que se faz novo, antes difícil agora legal, é, antes de todo, um convite a um sentimento novo, um novo espírito, uma nova vida. Mas isso não se aprende de ensinar, se aprende de viver. Então vivam, se façam novos e cantem, hoje, em 2013 (caso o mundo não acabe mais uma vez) e em todos os outros anos do resto de nossa vida.  

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Partir, Multiplicar e Partilhar: Mateus 14:13-21

Há muitas possibilidades de leitura para o texto que acabamos de ler, leituras que vão da compreensão comunitária e social do comer junto até leituras que se fundam na compreensão da inesgotável, criativa e maravilhosa capacidade de Jesus de efetuar o miraculoso. E eu começo a minha fala caminhando por algumas dessas formas de leitura até poder chegar onde eu quero chegar dentro do texto lido, o que, em grande parte, não se distanciará (e esta é a intenção, não se distanciar) das outras possibilidades de leitura.       

Duas dessas leituras, inicialmente, não estão muito distantes. A primeira delas trabalha com a ideia de que tanto a primeira quanto a segunda multiplicação dos pães e dos peixes são um exemplo de uma grande ação social comunitária, onde o dividir possibilitou o saciar da fome de todos. O que era individual passou a ser comum e, de repente, todos estavam satisfeitos, conforme o texto, e ainda mais, sobrou. É a ideia de que o Reino de Deus começa na compreensão de que não haveria mais nada que fosse de alguém, mas que tudo de todos seria para todos. A multiplicação se deu a partir da divisão e a divisão possibilitou a multiplicação, todos comeram e sobrou. Teologias de cunho mais social ou integralistas, tanto no mundo católico quando no mundo protestante e evangélico, como a teologia da libertação, a teologia pública e o evangelho integral, compreendem muito bem isso. E, em muito, eu tenho que concordar: a multiplicação dos pães e dos peixes está carregada de uma ação social compreendida e executada dentro do Reino de Deus. Ação social comunitária, comunitária e de comunidade. E aí chegamos à segunda possível leitura deste texto: é uma grande ceia. Ele olhou para o céu (verso 19), deu graças e partiu o pão. Partiu para dividir, dividiu para multiplicar, e todos comeram, gente boa e gente ruim, gente que estava ali por motivos nobres e outros não, gente confusa, gente triste, gente doente, mas também gente feliz, gente para ouvir, gente legal, gente de todo tipo. Todos comeram: homens, mulheres e crianças. Ninguém ficou de fora. Foi certamente um momento de confraternização, coisa de comunidade mesmo. Pois a gente só começa a se entender como comunidade quando a gente passa a partir, a dividir e a multiplicar, principalmente a comida, símbolo daquilo que nos aproxima. Só chamamos para comer com a gente, em casa ou nas festas de família quem está próximo e se faz mais próximo e mais próximo cada vez mais. Comer juntos é um princípio comunitário, humano e cristão. Sempre que possível, comam juntos (só tomem cuidado com o sal e com a quantidade de comida). Quando a mesa se torna comum, a conversa, a comida e a vida ficam mais gostosas. Quando eu lei esse texto eu fico imaginando lá, o burburinho daquela gente toda, sentados no chão, as mulheres conversando muito, os homens com assuntos "importantes", as crianças correndo, gritando, chorando, rindo, brincando, e a comida sendo passada de um a um, de uma a uma, partida e distribuída.            
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Agora, entre a ação humana e a intervenção divina, o milagre da multiplicação dos pães e peixes, está a compreensão de que do pouco Deus pode fazer muito. E eu também não posso deixar de entender assim também. O que vocês tem? Verifiquem (Marcos 06:38). "Tudo o que temos aqui são cinco pães e dois peixes" (verso 17, Mateus 11). Perfeito! Isso será o suficiente, será mais do que o suficiente, vai sobrar. A leitura de que Jesus, como interpretação do texto que lemos, pode usar o pouco que é oferecido a ele, transformando esse pouco em muito e esse muito em muito mesmo, a ponto de sobrar, é algo muito rico. E a grande pergunta é: o que você teria a oferecer? O que eu tenho a oferecer? O que nós, enquanto comunidade cristã (uma nova comunidade) temos a oferecer? Ainda mais agora quando tudo se apresenta de uma forma muito provisória, é tudo muito precário, muito por fazer, muito de começo, muito sozinho, muito e muito quando o que há é apenas pouco. Mas do pouco o muito pode ser feito, dentro da mesma lógica anterior: partir, dividir e multiplicar. Só que antes está o oferecer: o que vocês tem? Temos isso e estamos disposto a oferecer. Tenho isso e estou disposto a oferecer. Em João 06:09 o exemplo se torna ainda mais bonito: "Aqui está um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas o que é isto para tanta gente?" Disso, o pouco do que é profundamente humano, Deus faz o muito a partir do milagre, e a coisa acontece.

No entanto, todas as vezes que leio ou penso nesse texto, mesmo compreendendo bem a lógica social que ele possui, seu princípio comunitário e de comunidade, sabendo que do pouco o muito pode ser feito a partir da ação de Deus, há algo que fica martelando a mente, incomodando, é o verso 16: "Dêem-lhes vocês algo para comer". Uma outra versão, mais antiga, a qual me lembro melhor, é mais perturbadora ainda: "Dai-lhes vós de comer". É perturbador porque coloca a gente diante da mes­­­­­­­ma situação dos discípulos: a visão de uma grande multidão que recebe de Jesus compaixão (verso 14): "Quando Jesus saiu do barco e viu tão grande multidão, teve compaixão deles e curou os seus doentes". Saber que a multidão está aí e que há doentes de todos os tipos, e que ele ainda recebe de Deus compaixão me perturba porque eu também sou discípulo, a igreja é a congregação dos discípulos, e nós estamos juntos diante da multidão. Somos também a multidão, mas, como igreja, somos e, mas e também, olhamos para ela pelo lado de fora, e olhamos de forma cristã. A multidão continua com fome. Parafraseando os textos: Jesus, mande eles embora. Já está tarde. Estamos no meio do deserto. É muita gente. Vai ficar caro, e mesmo que tivéssemos o dinheiro, fizéssemos uma "vaquinha", não valeria a pena, seria desperdício. É melhor eles irem embora. Não, ainda o verso 16: "Eles não precisam ir. Dêem-lhes vocês algo para comer".

Se é para ser cristão, tem que ser para ser comprometido com esse negócio. Se é para ser igreja tem que ser para ser, no mínino, consciente da multidão, vê-los é o mínino. Mas não só isso, consciente também da "missão". Perturbados, incomodados, inconformados e, principalmente, chamados: "Dêem-lhes vocês algo para comer", seja essa comida pão, seja essa comida peixe, seja essa comida esperança, alegria, fé, carinho, amor, respeito, vida e tudo o mais que faz parte da prática cristã, do estilo de vida cristão. Agora é com a gente: "dêem-lhes vocês algo para comer", vejam o que vocês têm, partam, multipliquem, dividam e comam juntos, de forma social e em comunidade. Pois isso é a missão da igreja. Isso é o Reino de Deus. Isso é milagre de Jesus.         

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Cansados de Alma: Mateus 11:25-30

Todo o texto lido, em princípio, por mais básico e lógico que isso possa parecer, é lido por nossos próprios olhos (isso será sempre um pressuposto de leitura para cada uma de nossas reflexões, vocês sempre me ouvirão falar isso). Quando lemos, lemos a partir de nós mesmos, de nossa própria história, daquilo que recebemos, daquilo que ouvimos e lemos em nossa vida comum e em nossa vida de igreja, daquilo que vivemos e daquilo que estamos vivendo como momento. Quando lemos, lemos o texto e lemos a nós mesmo também. Esse é um princípio de qualquer leitura e interpretação. Mas, para ir além é preciso um pouco mais.  

Daí, nos encontramos aqui com uma das mais famosas e talvez uma das mais repetidas frases de Jesus: "Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e em mim encontrarão descanso para as vossas almas [...]" (verso 28 e 29 de Mateus 11, dito de forma decorada, diferente da versão lida, NVI). E talvez, já e automaticamente, nos identificamos como leitores e ouvintes atentos ao chamado de Jesus. É a nós ou, de uma forma mais individualizado ainda, é a você e é a mim que ele chama, se estivermos cansados, se eu estiver cansado, se você estiver cansado (ou cansada). É um chamado aos cansados. Mas não aos cansados de qualquer espécie, a apenas os cansados de alma: "e vocês encontrarão descanso para a suas almas" (verso 29, NVI). É um cansaço específico, diferente, diferente e mais profundo.     

E para entender isso, de uma forma mais significativa,  é preciso começar a ler não apenas com os nossos olhos, mas, se for possível, também com os olhos de Mateus e, principalmente, com os olhos dos primeiros ouvintes ou leitores de Jesus quando ele disse isso. Todavia, não é fácil fazer isso de primeiro momento, já que Mateus coloca o texto num lugar um pouco estranho, desconexo com o que está antes e com o que está depois do texto. Não parece haver uma sequência, não uma sequência lógica (para entender isso é preciso ler Mateus 10, 11 e 12). Já o texto em paralelo, Lucas 10:21ss, onde poderíamos buscar mais informações, não aparecem os versos 28, 29 e 30 de Mateus. Ele fala apenas da alegria de Jesus depois da volta dos 70, que cumpriram com êxito a missão para a qual foram enviados, e isso contempla apenas os versos 25, 26 e 27 que lemos em Mateus. O "vinde a mim" não está ali.

No entanto e mesmo assim, conhecendo os discípulos mais próximos de Jesus e seus anseios, conhecendo o público sempre presente nos discursos de Jesus, e conhecendo seus adversários mais comuns, percebemos logo quais eram os olhos e ouvidos iniciais focados nessa preciosa fala de Jesus. Eles são gente profundamente cansados de alma. É gente comum, gente que vive a vida de forma comum e enfrenta as dificuldade comuns da vida, e que, também, como também é comum, em alguns momentos enfrenta grandes dificuldades, mais pesada, mais duras, mais complicadas. É gente pobre, na sua maioria, é gente pecadora, também na sua maioria. É gente que sonha com uma realidade melhor apesar das dificuldades, é gente que quer uma vida melhor apesar das impossibilidades, é gente que deseja uma existência menos pesada. É gente que sonha e que tem esperanças. É gente que por conta da vida e de tudo o que rodeia a vida comum, quer Deus.  

Mas lá, Deus, para eles, se apresenta sempre como um ser inacessível. Como já disse a vocês, um ser que só pode ser alcançado em um único dia num único lugar por um único homem, o sumo sacerdote no santo dos santos. De uma outra forma, um Deus que só pode ser alcançado a partir de uma obediência cega a um conjunto de regras mais do que desumano, regras impostas por um forma de religiosidade ritualista que se alimentava da ideia de que a espiritualidade se dava no oferecer mais, no fazer mais, no ser mais, e cada vez mais dentro de uma lógica cíclica e sem fim. Em Mateus 23, Jesus exemplifica isso nas suas advertências aos religiosos, são os fardos pesados que não podem ser carregados por ninguém (verso 04). É uma religiosidade pesada que faz cansar, e, a muitos, desistir. Aos mesmo religiosos ele ainda diz, verso 13 do mesmo capítulo 23, "vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo". Entendiam que para ser de Deus precisava ser difícil e pesado.

Os primeiros ouvintes e leitores do texto que acabamos de ler, entendiam muito bem do peso da vida, assim como a gente. Mas também entendiam de um peso extra, o peso de uma forma de fé e religião que impossibilitavam um verdadeiro encontro com Deus. Cansados por conta da vida, cansados por conta de suas crenças. E mais, sem poder alcançar Deus. E aí Jesus aparece e faz um convite, que começa com um "venham a mim". Se não há para onde ir ou se não é possível ir para lá, venham para cá. Pois, ele se apresenta como uma possibilidade outra. Uma possibilidade outra para quem não suporta mais os pesos que são impostos, o peso comum da vida e o peso incomum da religiosidade. Uma possibilidade outra para quem não aguenta mais tentar e não conseguir. Uma possibilidade outra para quem se cansou de ouvir não como resposta. Uma possibilidade outra para quem se cansou de buscar e se frustrar. Mas Jesus não se apresenta como um outra via de um outro peso. Muito pelo contrário, ele se apresenta como alívio: "o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (verso 30). Para aqueles primeiros ouvintes, homens e mulheres da Judéia antiga, essas palavras devem ter soado de uma forma afetuosa e leve, acalento para o coração. Se Deus pesa, não é o Deus que Jesus nos ensinou. Suavidade e leveza fazem parte da espiritualidade de Jesus. 

Já hoje ou para hoje, eu diria, é também um dia de descanso. Não é muito diferente de lá. Somos gente também. Gente a procura de um caminho melhor, de um vida melhor, de um tempo melhor. Gente pecadora também, mas gente que compreende e busca por Deus, são desejos. Gente que quer ter uma espiritualidade viva. Uma religiosidade para a vida. Um cristianismo e uma "igrejismo" verdadeiro. Por isso, venham, venham e descansem, todos vocês que estão cansados e sobrecarregados. Venham e recebam o descanso de Jesus. Venham e tomem sobre vocês o jugo dele. Venham e aprendam humildade e mansidão. Venham e descansem suas cansadas almas. Hoje é tempo para isso: descansar a alma.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Tempo e Vida: Eclesiastes 03:01-12

Se há um livro bíblico que se possa chamar de predileto, esse livro, para mim, é o livro de Eclesiastes. Eu tenho um certa paixão por ele. Posso dizer que é uma afinidade maior, uma coisa mais próxima, até mesmo de identificação. Por isso, pelo menos um vez por ano, principalmente no final do ano, um tempo onde a gente começa a pensar na vida, nas realizações (que se fizeram ou não) e naquilo que se espera do futuro (enquanto projeto, enquanto sonho), eu sento para ler as palavras do sábio ou do poeta, ou do sábio poeta (a mistura dos dois). E gosto dele por algumas razões. Primeiro porque ele é poético, poético-bíblico, mas um pouco diferente da poesia dos salmos ou dos provérbios, que possuem uma preocupação mais devocional, no caso dos salmos, ou mais ético moral, no caso provérbios. Ele tem uma forma literária própria, gostosa de se ler e de se pensar enquanto se lê. Também porque, entre todos os livros bíblicos ele é o mais secular, não possui uma preocupação religiosa ou teológica muito pesada, apesar de sua profundidade na forma como vê Deus e como vê a relação desse Deus com a pessoa humana, e da pessoa humano com esse Deus. Por fim, gosto dele, enquanto livro, porque ele não rodeia para falar sobre a vida, a vida, nele, é como é e ponto.

Aí a gente chega aqui, no texto que lemos, uma poesia sobre o tempo e a vida. E o primeiro verso nos joga para um lógica confusa sobre o que se estabelece como "propósito". Diz ele: "Para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu: [...]". Como se tudo o que acontece acontecesse a partir de uma determinação preestabelecida (a redundância é importante aqui) não apenas num antes, mas num antes que esteja fora do tempo, como se tudo fosse controlado por uma vontade divina ou por um destino. Acontece porque tem que acontecer, aconteceu porque tinha que acontecer, acontecerá porque tem que acontecer. Como se tudo o que acontece tivesse uma data, um tempo onde o que tem que ser será, e a gente, como gente, pessoa humana, não possuísse uma forma de escapar disso.

No entanto, eclesiastes não possui uma compreensão de predeterminação ou de destino. Não necessariamente. O que ele está talvez dizendo, quando diz que há um tempo para cada propósito, e não um propósito para cada tempo, é que a vida, de forma simples, clara e objetiva, seja, de fato, assim mesmo: para cada coisa ou para todas as coisas uma ocasião. E isso não é destino, é condição, é a vida. É só o tempo. É só a vida. É simplesmente assim, e disso nós também não podemos fugir. Você e eu não podemos fugir da contingência da vida. Nem de seus momentos ambíguos, diferentes, contraditórios: nascer ou morrer, plantar ou arrancar, matar ou curar, derrubar ou construir, chorar ou rir, prantear ou dançar, espalhar ou ajuntar, abraçar ou se conter, procurar ou desistir, guardar ou jogar fora, rasgar ou costurar, calar ou falar, amar ou odiar, lutar ou viver em paz. Tudo tem seu tempo dentro da vida. Cada um de nós vai viver, em algum momento, uma dessas situações, vamos transitar entre uma e outra, cada qual em seu próprio tempo. Quando a coisa for para chorar, será o tempo de chorar, quando a coisa for para rir, será o tempo de rir. Quando a coisa for para procurar, será o tempo de procurar, quando for para desistir, será o tempo de desistir. E assim de igual forma em tudo aquilo que ele nos apresenta, o tempo e o propósito. E a vida segue. E a gente segue, ora rasgando, ora costurando, ora guardando, ora jogando fora. Mesmo que sem parar muito para pensar nisso, mesmo que sem ter tempo para refletir sobre isso.  

Daí o sábio poeta chama isso de fardo: "tenho visto o fardo que Deus impôs aos homens" (verso 10). E repete no verso 09 aquilo que ele diz por quase todo o seu livro, de uma forma diferente, mas é isto: todo o esforço é inútil: "O que ganha o trabalhador com todo o seu esforço?" Nada. Ele nada pode acrescentar ou mudar. Pois, para cada propósito há seu tempo: "Ele fez tudo apropriado ao seu tempo" (verso 11). E mais, Deus colocou no coração do homem a eternidade (ainda o verso 11), talvez para tê-la como contraponto do tempo, mostrar que o pouco aqui é insignificante diante do que é eterno. O que passamos aqui é nada diante da eternidade que não passa. Algo muito perto daquilo que o apóstolo Paulo diz em Romanos 8:18: "Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada". E o sábio poeta continua: "mesmo assim ele (nós) não compreendemos inteiramente o que Deus fez" (ainda verso 11).

De certa forma, olhando dessa perspectiva, é tudo tão pequeno, mas continua sendo a vida. É tudo tão rápido, mas continua sendo a vida. É tudo tão sem sentido, mas continua sendo a vida (a minha vida e a sua vida). Ontem eu estava calado, mas hoje estou falando. Amanhã posso estar amando e logo depois odiando. Agora quero paz, mas antes queria a luta. Tudo é apenas uma questão de propósito e tempo. Posso chorar um noite inteira, e sorrir pela manhã. Tudo possui seu tempo. O negócio então talvez esteja em saber qual é agora o tempo. Olhar para a vida da gente (da gente enquanto pessoa e da gente enquanto comunidade) e fazer uma leitura do tempo. Olhar e perguntar: que momento é agora? Qual tempo? Responder a essa pergunta sem euforia ou sem desespero é sinal de amadurecimento de vida. Responder a essa pergunta cheio de esperança, mas consciente do caminho é sinal de maturidade espiritual. Responder a essa pergunta sem medo é se saber e se ver pronto, pronto para a vida e para qualquer tempo. É chegar ao verso 12, o último verso lido, e entender a vida: "Descobri que não há nada melhor para o homem (para cada um de nós) do que ser feliz (independente do tempo) e praticar o bem enquanto vive (independente do tempo)". 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Ressurreição e Reconstrução: João 02:12-22


João capítulo 02, do verso 12 ao verso 22, especificamente os versos 19, 20 e 21, enquanto narrativa, enquanto texto escrito para a comunidade cristã ler num tempo já bem posterior, só poderia estar, como texto e como ideia (ideia teológica e eclesiástica), no evangelho de João. Digo isso por mais lógico que isso possa parecer. Diferentemente dos sinóticos: Mateus, Marcos e Lucas, João coloca Jesus em Jerusalém, no templo, no período da páscoa, em embates religiosos, já em seus primeiros capítulos. João, em seu texto, se aplica a um desenvolvimento cronológico e de ideias diferente. A frase do verso 19, apenas como exemplo, de um modo um pouco diferente, aparece em Marcos 14:57-58 (não como afirmação de Jesus, mas como acusação contra ele): "Então se levantaram alguns e declararam falsamente contra ele: "Nós o ouvimos dizer: "Destruirei este templo feito por mãos humanas e em três dias construirei outro, não feito por mãos de homens"". No entanto, o verso 19: "Destruam este templo, e eu o levantarei em três dias", desse jeito, da forma como está, só pode ser lido em João. E mais, só pode ser lido e entendido a partir de João.    

Tudo começa com a ideia de que Jesus, sua família e seus discípulos estão descendo para Cafarnaum e, depois, Jesus (não há referência à família ou aos discípulos) está subindo para Jerusalém para o período da páscoa dos judeus (verso 12-13) - é o período das festividades. Chegando lá, ele percebe (ele vê, diz o texto) que a casa que era para ser chamada de casa de oração para todos os povos ou todas as gentes (isso está em Mateus 21:13), tornou-se um "covil de ladrões". Já João, de uma forma mais branda que em Mateus, diz que Jesus disse algo menos pesado: "Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado" (verso 16). E, em princípio, é claro que aquilo não foi uma percepção de momento, ele viu e percebeu, Jesus sabia de tudo aquilo há muito tempo. Todos ali sabiam daquilo há muito tempo. Não é algo novo, mas chegou ali ao seu limite. E, também é claro, apesar de João usar palavras menos pesadas que Mateus, que o chicote na mão, a expulsão dos cambistas, a fala dura do verso 16 e a fala metafórica do verso 19 colocam Jesus em uma posição difícil diante da religião judaica, o colocam em contraposição ao templo. Jesus é agora mais um entre os muitos judeus que acreditam que todos os problemas da nação começam ali, no templo. Mais e principalmente de que todos os problemas da nação em relação com Deus começam ali.    

E não há nada de novo nisso, pois isso começa com os contrários à reconstrução do templo (Neemias e Esdras), passa pelos profetas - Oséias me parece o mais duro nesse sentido - e chega a grupos separatistas do período de Jesus, que, em extremos, por conta da impossibilidade de um reforma religiosa, passam a pregar, explicitamente, contra o templo, e, se possível, torcem pela destruição dele. Por isso, o verso 19, no texto que lemos, se torna tão importante: "destruam este templo...". E, também por isso, acaba servindo em Marcos, como forma de acusação contra Jesus. Ele é um deles. E, de certa forma, é mesmo.

Assim, olhando para tudo aquilo, seria impossível compreender uma ausência de atitude de Jesus. Ele tinha que fazer algo, e fez. Tinha que dizer algo, e disse. Pois, entender e aceitar um Deus aprisionado no templo, no santo dos santos, acessível apenas para um único homem em um único dia era algo inadmissível. Ver a Deus como Jesus via e, de repente, trombar aqui com o sábado, esbarrar ali com a lei, tropeçar acolá com os ritos sacrificais não era, certamente, algo cômodo ou fácil para ele. Um Deus que não se misturasse à caminhada histórica de seu povo (tabernacular, segundo Hebreus), que não se misturasse às angústias e desafios de cada um deles, que não se fizesse tanto no céu quanto na terra (segundo o Pai Nosso), seria um Deus impensável para Jesus. Como ele disse para a mulher samaritana em João 04, não está lá em Jerusalém, nem está aqui neste monte, está em todos os lugares e em todos os tempos, pois isso tudo está na relação feita da "verdade", feita do "espírito", feita da proximidade e da intimidade. Por isso, "derrubem este templo".

Todavia, João diz nos versos 21 e 22, que Jesus falava sim era do seu corpo, o que só pode ser entendido, de forma completa, na ressurreição. "Os judeus responderam: "Este templo levou quarenta e seis anos para ser edificado, e o senhor vai levantá-lo em três dias?"" (verso 20). Sim, vou. Pois, se o templo, que levou quarenta e seis anos para ser edificado, tornou-se prisão para todo a forma de relacionamento próximo com Deus, o corpo, ressuscitado de Jesus, em três dias, tornou-se libertação, e mais: uma possibilidade única e próxima de uma espiritualidade sem igual. Não era apenas um corpo voltando à vida. Era a vida voltando ao corpo. Era a vida se tornando mais vida, pois agora, Deus, antes inacessível, não estaria mais lá, na impossibilidade. Deus seria agora um aqui. Perto. Presente. Junto. Corpo.       

E isso é um tipo de coisa que não se explica assim, fácil. A gente só vê e entende quando a gente olha de perto, por exemplo, para a Maria Madalena (João 20:16) olhando para Jesus, depois de um longo choro de tristeza e desesperança, dizendo: "levaram o meu Senhor", e aí exclama: "Mestre!" Não era o jardineiro. É uma coisa que a gente só entende entendendo a incredulidade de Tomé, pois ele é daqueles que sabe que "a alegria (ou a esperança) de pobre dura pouco". Por que então seria diferente daquela vez e logo com eles? Mas então foi. E ele reconhece: "Senhor meu e Deus meu!" (João 20:28). É coisa que a gente só entende quando a gente caminha junto com aqueles dois sujeitos a caminho de Emaús (Lucas 24), desencantados sujeitos, e aí, também, de repente, percebe, assim como eles, que "não estava queimando o nosso  coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos expunha as Escrituras?" (Lucas 24:32). Como se algo estivesse lá, dentro deles, na esperança deles, naquilo caminho de volta, de volta na vida, quase apagando, mas que, de repente, a partir daquela voz, daquelas palavras, volta a queimar. É coisa que só se entende quando a gente ouve Jesus dizer a Pedro: "tu me amas?" e ouve a resposta constrangida de Pedro dizendo: "Senhor, tu sabes todas as coisas e sabes que te amo". Vê, ouve e reconhece nisso a profundidade do amor e do perdão de Deus. Tudo sem sacrifícios, sem sacerdotes, sem ritos ou formas, sem templo, sem religião. Para entender tem que sentar lá, junto com eles, tendo apenas o mar, a fogueira, os peixes e o céu como testemunhas. Espiritualidade na beira do mar. É coisa que só se entende quando se experimenta, quando se vive, com a mesma proximidade, com o mesmo sentimento, com a mesma intensidade. 

"Destruam este templo e eu o levantarei em três dias. [...] Mas o templo do qual ele falava era o seu corpo. Depois que ressuscitou dos mortos, os seus discípulos lembraram-se do que ele tinha dito. Então creram na Escritura e na palavra que Jesus dissera". Que nós também nos lembremos disso, e vivamos sempre na esperança da ressurreição. Que Deus nos abençoe.             

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Um caminho outro: Mateus 26:47-56


O que eu gostaria de pensar com vocês hoje, neste nosso momento de encontro, não será, de certa forma, novidade para alguns, já que o caminho para essa reflexão começou em um outro momento, em um outro encontro, sem aprofundamento, é verdade, foi rápido, mas já começou. No entanto, também é possível dizer que já começou faz "é" tempo. Em cada um de nós em tempos e de diferentes formas. Talvez fosse apenas como uma inquietação (e isso começa assim), que acabou virando uma inquietude (esse é o meio do caminho), e terminou se transformando em um desejo de busca por um caminho outro: um novo e aprofundado caminho de vida com Deus, de espiritualidade cristã, do ser cristão, tanto como pessoa individualizada, quanto como comunidade de fé, do ser e do se fazer igreja. E o primeiro a caminhar por esse caminho, para deixar o caminho marcado, foi o Cristo, e é para ele que olhamos e fiamos nossa caminhada. Assim, voltamos para o texto: Mateus 26:47-56. 

Quando Jesus e seus discípulos chegam ao Getsêmani (Prensa de Azeite), em Mateus 26, toda a inquietação, toda a inquietude e todo o desejo que eles possuíam chegam a um ponto de culminação: "é um agora". Naquele jardim tudo estava muito misturado, junto e ao mesmo tempo nas mentes e esperanças deles. E para muitos ali, são os anseios e esperanças de uma vida toda. Seria o fim de uma caminhada antiga em busca de liberdade, justiça e paz. 

Aquela gente era uma gente sofrida que vivia há muito tempo debaixo de uma escravidão camuflada, de uma forma de domínio que tentava não ser vista, mas que estava sempre ali, diante dos olhos e da vida de todos. Por vezes eles lutaram, morreram e viram gente morrer buscando libertação, buscando uma possibilidade de vida diferente, uma forma de existência menos sofrida. E o que era pior, era que Deus, o possibilitador da libertação, também havia sido feito escravo - digo isso enquanto discurso religioso - dos mesmos que haviam dominado o povo. A religião, o templo e os sacerdotes, vendidos, legitimavam aquela opressão a partir de suas práticas e discursos, ora dizendo que era a vontade de Deus, ora dizendo que era castigo de Deus, ora dizendo que a solução estava num futuro distante, escatológico, que só seria alcançado se o presente, sofrível presente, fosse carregado de obediência, ofertas e sacrifícios. O jugo (ou peso) era dobrado, oprimidos pelos de fora (em nome de César), oprimidos pelos de dentro (em nome de Deus). Aqueles que ali estavam, com Jesus, no Jardim das Oliveiras, não esperam outra coisa de seu mestre que não fosse libertação. Ele era o filho de Davi, o rei que havia de vir, e que, finalmente, devolveria o reino a Israel. Aí, quando a gente volta a gente entende frases (ou perguntas) como: "é agora que restaurarás o reino?", "é nesse tempo?", "Quando será?" Entendemos aquelas espadas de Lucas 22:36ss. Espadas depois da ceia. Tudo passa a ser uma coisa só. Jesus ali, não mais na Galileia, onde causava pouco incômodo, mas em Jerusalém, na cidade do Rei, na cidade de Deus, só podia ser uma coisa, só podia ser agora. Adendo: nós nunca daremos conta do que Pedro, Tiago e João, os três mais próximos de Jesus, sentiam naquele momento. Nem deles, nem dos outros nove (mesmo Judas), nem dos outros sessenta ou setenta seguidores de Jesus, sua primeira comunidade. Não podemos dar conta, pois não vivemos e nem viveremos uma situação tão pesada e crítica como a deles. Nem mesmo saberemos os sentimentos de Jesus. No verso 38, do mesmo capítulo onde estamos, ele diz: "A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo". Ele também sabe, aquele momento seria decisivo para ele e para os seus. Ali estava a decisão de algo que começou na beira do rio Jordão, com a famosa frase: "o Reino de Deus está próximo".  

Todavia, por maior que fosse a causa dos discípulos de Jesus, a libertação de um povo, de Israel, deles mesmos. O Reino, do "Reino de Deus está próximo", discurso de João Batista, discurso de Jesus, era ainda maior, uma causa maior. Aquela era uma causa humana e para toda a humanidade: a libertação de toda aquele e de toda aquela que, de qualquer forma ou de alguma forma, se torna escravo. Se há alguma coisa pela qual se esforçar, se há alguma coisa pela qual lutar, se há alguma coisa pela qual morrer, essa coisa (ou causa) é a libertação humana, libertação da pessoa humana. Jesus sabe que o problema não é Roma. O problema é a política de controle, opressão e expropriação. Isso está em Roma, está em Brasília, está em todas as instâncias de governo, está no trabalho, está na igreja, está dentro de casa, está em todas as relações de poder, está na gente. Jesus também sabe que o problema não é Deus. O problema é a religião que enclausura Deus e cria regras para a espiritualidade, que determina quem está dentro e quem está fora, quem faz parte e quem não faz, quem tem a benção e quem não tem. Se há alguma coisa pela qual lutar é por isso, ou melhor, pelo fim disso tudo. Se há alguma coisa pela qual lutar, que seja pelo Reino e por sua justiça. Por liberdade e por vida. 

Então um deles puxa a espada (verso 51), Pedro, segundo João (18:10), e fere "o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha". Então, "disse-lhe Jesus: (verso 52) "Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão"". Jesus não usa espadas em sua luta. Ele prefere a cruz. Quem chega ao poder através da espada, através da espada perderá o poder. Pois espada só gera mais espada. Violência só gera mais violência, estupidez mais estupidez. E o Reino de Deus não é assim: "Você acha que eu não posso pedir a meu Pai, e ele não colocaria imediatamente à minha disposição mais de doze legiões de anjos?" (verso 53). Mas não é esse o caminho do Reino. 

A cruz, além de seu elemento vicário, nela esteve "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo", além de seu elemento salvívico, entendemos e acreditamos nisso, possui um caráter de resistência. A cruz também foi arma de resistência. Quem é que pode derrotar alguém que já decidiu pela entrega, "pela derrota"? "Ninguém a tira de mim (ele falava sobre a sua própria vida), mas eu a dou por minha espontânea vontade" (João 10:18). A cruz foi o lugar onde culminou todo o discurso do Reino: a outra face, a túnica e a capa, a segunda milha, a compreensão de que para uma causa maior, o método precisava ser único, e foi. Não era e não foi derrotismo. Foi uma outra via, um outro caminho, uma outra ação. Foi algo contra toda a cultura (tanto a deles quanto a nossa), contra todo o espírito do mundo (deles e nosso), que conclama a vitória a qualquer custo, vitória e sucesso. Foi algo contra todas as ideias de luta e conquista. E foi algo tão forte, mas tão forte, que ainda ecoa entre nós enquanto proposta cristã, do ser cristão: "Jesus dizia a todos (Lucas 09:23-24): "Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa, este a salvará"". Eis o caminho. Em verdade, o início dele, apenas o início. Depois veio a ressurreição, mas sobre isso falaremos em um outro momento. Que Deus nos abençoe.

domingo, 7 de outubro de 2012

Um poder libertador: Atos 03:01-10


(Reflexão feita na Igreja Batista em Barão Geraldo no dia 07/10/2012)

Apesar de já existirem no livro de Atos, os Atos dos Apóstolos, em seus capítulos anteriores, enquanto narrativas, alguns acontecimentos extraordinários, como a ascensão de Jesus aos céus, no capítulo primeiro, e a divisão das línguas ou o dia de pentecostes, no capítulo segundo, eu entendo que o primeiro sinal miraculoso pertencente de forma exclusiva aos discípulos de Jesus esteja aqui, na narrativa que acabamos de ler, Atos 03:01-10. Pois, para mim, a cura efetuada por Pedro e João ali, na porta do templo, às três horas da tarde, na hora da oração, tendo como beneficiário um aleijado de nascença, é o ato miraculoso que inaugura algo diferente nos caminhos do Reino de Deus, é o início efetivo do ministério apostólico. É o começo de um novo tempo, de uma nova etapa que agora se fará sem a presença física de Jesus. E isso se dá (ou se deu), enquanto legitimação do caminho profético dentro do Reino de Deus, da mesma forma como se deu em Jesus. Pois o ministério de Jesus é também inaugurado por um ato miraculoso, a transformação de água em vinho em João capítulo 02, tradicionalmente conhecido como o primeiro milagre de Jesus, até porque o próprio evangelho de João aponta para isso: "Este sinal miraculoso, em Caná da Galiléia, foi o primeiro que Jesus realizou" (João 02:11). Mesmo e apesar dos outros evangelhos nem mesmo fazerem menção a esse acontecimento. Em Mateus o miraculoso vem depois do profético-palavra, mais como confirmação, Mateus 08. Em Marcos tudo é muito rápido, tudo muito misturado. Em Lucas está uma mistura de Mateus e Marcos, o miraculoso como confirmação da palavra profética.    

Todavia, é o ato miraculoso que inaugura o ministério (evangelho de João), que legitima (os Sinóticos) o profeta em seu caminho profético. Inaugura ou legitima, não importa. O profético, nesse sentido inicial, precisa estar vinculado ao extraordinário, ao milagre, ao miraculoso. Voltando a Atos, no capítulo primeiro, vemos que a ascensão, como ato miraculoso, ainda é ato de Jesus. E no capítulo segundo, na descida do Espírito Santo, o pentecostes, o ato é do Espírito. É apenas no terceiro capítulo que o ato se torna apostólico. Pedro e João possuem agora o mesmo status profético de Elias e Eliseu, ambos do Antigo de Testamento, e o mesmo status profético do próprio Jesus. Agora é o tempo apostólico, é o tempo dos discípulos de Jesus. E é o ato miraculoso do capítulo 03 que inicia isso. Sem ele, não haveria começo.

E aqui eu preciso parar e começar a confessar alguns pecados. Pecados meus, um em verdade. É tentador compreender que o milagre em si mesmo é aquilo que dá ao profeta toda a autoridade, já que o miraculoso carrega em si uma enormidade de poder. Imaginem só poder sair por aí com o poder de dizer "levanta e anda", ou "anda", ou "veja", ou "fale", ou "ouça". Ser portador da cura imediata. Seria "show de bola". Extraordinariamente "show de bola". Pois todo ato miraculoso causa espanto, admiração e medo, pois revela poder, e quanto poder. Quem não se tornaria admirador de alguém que detenha tal poder? Em Marcos 4, depois de Jesus acalmar a tempestade, os discípulos, "apavorados", diz o verso 41, "perguntavam uns aos outros: "quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?". Da mesma forma, o texto que acabamos de ler revela o mesmo espanto e a mesmo admiração, como em qualquer outro texto que segue a um acontecimento que foge ao comum: "todos ficaram perplexos e muito admirados com o que lhe tinha acontecido" (verso 09, Atos 03). Quem seriam aqueles que estavam, agora, depois da morte de Jesus, fazendo aleijados andar? Quem? Mereceriam ser ouvidos, mereceriam louvor pelo que fizeram. É por isso que a multidão, da mesma forma como se aglomeravam ao redor de Jesus, vai se reunir ao redor deles a partir do verso 11. Quem sabe outros feitos miraculosos não se fizessem necessários ali, outras curas, e aí a coisa seria até mais rápida e mais fácil para os discípulos, para a expansão do evangelho, para o ganhar almas, para se fazer e ser igreja de uma forma mais consistente. Tudo isso seria tentador, muito tentador.

Quando eu vim de Santa Fé do Sul, em 1997, e agora o meu pecado eu confesso, vim para estudar teologia e me tornar pastor, vim me sentindo como Pedro e João subindo ao tempo, só na expectativa de encontrar um aleijado, ou alguns aleijados, talvez uns cegos também, mudos, surdos, endemoninhados. Seria só estender as mãos. Mortos não, ressuscitar demandaria um pouco mais de experiência e santidade. Mas eu estava me sentindo, "levanta e anda". Poder. No entanto eu já me perdoei por esse pecado, eu só tinha 17 anos. Espero que quem conviveu comigo nesse mesmo período também tenha me perdoado.

Levei muito tempo para compreender o que agora falo a vocês. Pedro e João não estavam se sentido como eu me sentia achando que sentia como eles. O sentir deles era outro. Era outro sentimento. Era outro espírito. Era outro poder. Levei muito tempo para compreender o que de fato eles tinha e estavam oferecendo: "não tenho prata nem ouro, mas o que eu tenho, isto lhe dou", libertação. Tiro você dessa condição à margem. Você não vai ficar mais à porta, você vai lá para dentro com a gente. Vai participar: "E de um salto pôs-se em pé (este é o verso 08) e começou a andar. Depois entrou com eles no pátio do templo, andando, saltando e louvando a Deus". Não era um poder miraculoso, era um miraculoso poder, o poder de libertar, o poder libertador do evangelho, era o Reino de Deus. E quão estranho é isto: o poder de libertar. É o poder em sua forma contraditória, é o poder único e final, pois quando se liberta não há mais nem necessidade e nem razão para o poder, a não ser o poder de ser livre. É isto o que eu tenho, é isto o que eu te dou, seja livre por meio de Jesus.

Levei muito tempo para entender isso, mas eles, Pedro e João, também. Hoje eu já não me sinto (me sentindo) mais como Pedro e João. Mas sinto que deveria sentir. Ter deles o mesmo sentir, o mesmo sentido, o mesmo sentimento, o mesmo espírito. Ter o que eles tinham e ofereceram. Tirar quem está à margem e por no meio. Tirar quem está fora e por dentro. Tornar participante quem jamais será escolhido, pelo menos não pelos meios comuns. Mostrar um outro caminho, uma outra possibilidade a quem só consegue ver e ter o que já vê e o que já tem. Olhar bem para a realidade que está ao redor, bem e bem de perto quem está perto, e também ser visto, ser possuído por misericórdia  e compaixão e ajudar conforme for possível: "Pedro e João olharam bem para ele e, então, Pedro disse: "olhe para nós!" O homem olhou para eles com atenção, esperando receber deles alguma coisa" (verso 04). E recebeu. Aquele homem, cujo nome não fora nem citado, depois dali não mais vai voltar a ser quem era, àquela rotina de desde a infância, de mendigar, de se humilhar, de ser visto como alguém que é digno de pena, de esmola, do que sobra. Ele não vai ficar mais à porta, mesmo que ela seja "formosa". Ele não será mais excluído, nem pela sociedade que sempre o deveria ver como estorvo, como imagem de desconforto, como pela religiosidade, que via nele a imagem do pecado, de um pagamento por um culpa dele ou de outro alguém. Não mais. Pois agora ele faz parte de algo maior, maior do que ele, maior do os dois que estão ali diante dele, maior do que o templo. 

Eu não estou me sentindo mais, ainda bem. Aprendi. Mas ainda sinto que deveria sentir o desejo pelo poder, o poder de ser livre e proporcionar libertação. Assim como Pedro, assim como João. Subir ao tempo na hora da oração e encontrar quem quer que seja pelo caminho, e ser, pelo menos, útil. Espero também que esse seja também o seu sentir, tanto como pessoa humana, quanto como um cristão humano. Tanto quanto individuo envolvido em sua própria vida, quanto como comunidade de fé, de fé cristã, preocupado com o seguimento de Jesus, com o caminho do Reino de Deus, do Reino próximo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sussurros Eclesiásticos: Mateus 10:24-31


A reflexão que segue, e que se segue há muito tempo, começa de uma leitura despreocupada no evangelho de Mateus, feita em casa, numa mesa, junto com um grupo de amigos e amigas todas as quintas. Foi reflexão em Barão Geraldo, na Igreja Batista de lá, no último dia 23, e na Igreja Batista em Holambra, no último dia 30. Agora posto o texto. Tinha caráter de estudo, sem muitas pretensões aplicativas. Mas, como toda leitura já é uma releitura, o texto se aplica, quase que de forma automática, pois todo texto lido aponta sempre para fora de si, e esse "si", agora, somos nós, seus leitores. Pois bem...!

O texto lido, oito versículos, fazem parte de um conjunto de palavras de Jesus, recomendações em verdade, ao grupo específico de seus discípulos, os doze, que serão enviados para um período de pregações, milagres, curas e libertação (verso 08), que deverá se dar pelas cidades, cidadelas e vilas do contexto da Galiléia (creio eu, baseado em Mateus 11:01), principalmente onde não haja muitos gentios ou samaritanos, já que a recomendação, no verso 05, é bem clara quanto a isso, nem gentios nem samaritanos, mas apenas aos judeus, verso 06, os da família. No verso 07 está a ordem para o discurso, é o Reino. O verso 08 é o que precisa ser feito. E aí os dois se complementam, 07 e 08, é o Reino de Deus em palavras e ações, é o Reino de Deus em sua completude, inteiro. Mas, sobre isso, poderemos conversar em outro momento, em uma outra oportunidade, por agora, o que interessa são nossos oito versos lidos, que começam no verso 24.  

E no que nos interessa, no nosso texto especificamente, as palavras de recomendação são básicas. Começam de uma forma básica, e não básica no sentido simplista, mas básica no sentido de ponto de partida: basta a vocês (os discípulos) serem iguais a mim (e é o Cristo que fala), vejamos os versos 24 e 25: "O discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e o servo, como o seu senhor". Eis aí o princípio da missão. Bastava ao discípulo, aos doze em verdade, dizerem e fazerem o que Jesus havia dito e feito até aquele momento. Palavras do Reino, ações do Reino. Isso é básico. É o ponto de partida do ser cristão, de ser discípulo do mestre Jesus. No final do verso 25, ironicamente, Jesus faz referência ao que aconteceu no verso 34 do capítulo 09, é preciso ler para entender: "Se o dono da casa foi chamado Belzebu (por ter libertado alguém pequeno e oprimido de alguém maior e opressor), quanto mais os membros da família". Basta a vocês dizerem o que eu digo e fazerem o que eu faço e todos entenderam o verso 07, que o Reino de Deus está próximo, que ele está se fazendo. Basta a vocês seguirem o meu caminho e as coisas certamente vão acontecer, tanto para o bem, pois muito gente vai ser libertada, quanto para o mal, pois os discípulos serão perseguidos (versos 28ss).

Mas não é para se temer (verso 26), pois tudo o que vinha sendo feito às escondidas, pelo menos essa foi a tentativa: por vezes Jesus pediu segredo aos que foram currados, e, talvez, a maior parte de seus ensinamentos ainda estive oculto, pois eles tinham sido dados nas rodas de conversas particulares entre ele e os seus; tudo isso, agora, deveria ser dado ao mundo, e dado de uma forma clara e convincente: "O que eu lhes digo na escuridão, falem à luz do dia; o que é sussurrado em seus ouvidos, proclamem dos telhados" (verso 27). Abro um adendo aqui: que frase bonita! Fecho meu adendo. Pois o Reino de Deus começa quando os discípulos do Senhor do Reino transformam o seu convívio com Jesus num convívio com pessoas humanas, com gente de lá de fora, gente pequena (pequeninos) e oprimida, que precisa "mais do que depressa" de libertação. Pois o Reino de Deus começa quando a conversa tida ao redor da fogueira, que iluminava e aquecia não apenas os olhos e o corpo, mas acima de tudo a mente e alma, quando essa conversa se faz presente na luz do cotidiano, na vida comum, lá em casa, lá no trabalho, lá na escola, onde o real da vida quase sempre pesa mais do que a esperança e o sonho juntos. A conversa noturna, mesmo que apenas aquela que é dominical, tem que se fazer presente no dia, na história real, na vida. Do contrário, não haverá Reino. É por isso que o que foi sussurrado ao pé do ouvido, tem que ser gritado do alto do telhado. As notícias do Reino são para todos. Elas transformam o opressor em culpado, e o oprimido em um ser liberto: "Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça, dêem também de graça" (verso 08). "Não tenham medo..." ele repete isso no verso 28, e volta a falar de perseguição, e logo depois as recomendações acabam.   

E aí! E aí a gente só pode imaginar, pensar que eles saíram, compreendendo que o caminho era aquele, foram de cidade em cidade, que em verdade, para nós hoje, seriam apenas pequenos aglomerados de casa aqui e ali. Fizeram o que Jesus falou, transformaram a ideia do Reino em um Reino que se fez verdadeiramente próximo, o que eram conversas noturnas ao redor da fogueira virou discurso pela manhã, o que eram apenas sussurros ao pé do ouvido se tornaram gritos no telhado. E aí, o tempo passou, e a gente tem que continuar imaginando, eles voltaram exultantes pelo que haviam feito, conforme Lucas 10, texto que me parece possuir um paralelo muito forte com o texto que lemos, verso 17: "os setenta e dois voltaram alegres e disseram: "Senhor, até os demônios se submetem a nós, em teu nome". Está feito, o Reino realmente está próximo, porque se fez próximo.

E o tempo passou novamente, e os discípulos voltaram para as conversas ao redor da fogueira, para as falas em sussurro, sussurros eclesiásticos, conjecturando sobre o sexo dos anjos ou sobre suas próprias idiossincrasias, pensando e falando sobre aquilo que pertence somente a si próprios. Criaram até um linguajar próprio, uma língua alienígena para poder continuar se comunicando com sussurros mesmo não estando ao redor da fogueira. É a língua que só os iniciados compreendem. E o tempo passou tanto que eles (os discípulos) ficaram confusos, mais confusos ainda, e passaram a achar que o discurso sobre o Reino era realmente o próprio Reino, um conceito para ser sistematizado, que o Reino próximo era aquele ali, da noite e da fogueira. Tornaram-se endógenos, e o Reino virou igreja.

No entanto, enquanto os discípulos de Jesus sussurram ao redor da fogueira, longe de suas preocupações eclesiásticas, de sua espiritualidade e pastoral ensimesmada, os lobos uivam, uivam, rosnam e latem, devorando os pequeninos. Oferecem libertação em troca de dinheiro, quando era para oferecer de graça o que foi dado de graça. São "simonistas" ao extremo, à luz do dia, à luz da televisão, na "cara" de todos. Sem nenhuma piedade eles devoram gente que, como em qualquer multidão, vive como se estivessem sem pastor. Vivem da miséria dos outros, e não se sentem miseráveis por isso. Não sentem nem vergonha. Agora os lobos têm outra cara também, e estão uivando pedindo votos. Alguns uivam imitando harpas angelicais ou (órgãos) pianos evangélicos. Uivam hinos de louvor. E há tantos outros lobos lá fora, tantos quanto você puder imaginar, talvez até mais do que você possa imaginar, tantos diferentes, que seus uivos, rosnados e latidos se misturam, mas todos com um único propósito: oprimir e devorar, quantos forem possível. Não há culpa, não há Reino, não há libertação. Não enquanto os discípulos de Jesus estiverem sussurram ao redor da fogueira. Porque o Reino não é e nunca foi para dentro, ele é para fora, ele é lá fora. É na luz do dia, é falar tão alto quantos os uivos, é falar contra os uivos. É enfrentar os lobos para proteger os pequeninos. E, "não tenham medo", disse Jesus. Pois o Reino é também enfrentamento (Mt 10:34). Todavia, é preciso ler novamente o verso 27, e pensar, e falar, e fazer o Reino. Como? Simplesmente sendo como ele foi. O servo como seu senhor, o discípulo como o seu mestre.