quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Um caminho outro: Mateus 26:47-56


O que eu gostaria de pensar com vocês hoje, neste nosso momento de encontro, não será, de certa forma, novidade para alguns, já que o caminho para essa reflexão começou em um outro momento, em um outro encontro, sem aprofundamento, é verdade, foi rápido, mas já começou. No entanto, também é possível dizer que já começou faz "é" tempo. Em cada um de nós em tempos e de diferentes formas. Talvez fosse apenas como uma inquietação (e isso começa assim), que acabou virando uma inquietude (esse é o meio do caminho), e terminou se transformando em um desejo de busca por um caminho outro: um novo e aprofundado caminho de vida com Deus, de espiritualidade cristã, do ser cristão, tanto como pessoa individualizada, quanto como comunidade de fé, do ser e do se fazer igreja. E o primeiro a caminhar por esse caminho, para deixar o caminho marcado, foi o Cristo, e é para ele que olhamos e fiamos nossa caminhada. Assim, voltamos para o texto: Mateus 26:47-56. 

Quando Jesus e seus discípulos chegam ao Getsêmani (Prensa de Azeite), em Mateus 26, toda a inquietação, toda a inquietude e todo o desejo que eles possuíam chegam a um ponto de culminação: "é um agora". Naquele jardim tudo estava muito misturado, junto e ao mesmo tempo nas mentes e esperanças deles. E para muitos ali, são os anseios e esperanças de uma vida toda. Seria o fim de uma caminhada antiga em busca de liberdade, justiça e paz. 

Aquela gente era uma gente sofrida que vivia há muito tempo debaixo de uma escravidão camuflada, de uma forma de domínio que tentava não ser vista, mas que estava sempre ali, diante dos olhos e da vida de todos. Por vezes eles lutaram, morreram e viram gente morrer buscando libertação, buscando uma possibilidade de vida diferente, uma forma de existência menos sofrida. E o que era pior, era que Deus, o possibilitador da libertação, também havia sido feito escravo - digo isso enquanto discurso religioso - dos mesmos que haviam dominado o povo. A religião, o templo e os sacerdotes, vendidos, legitimavam aquela opressão a partir de suas práticas e discursos, ora dizendo que era a vontade de Deus, ora dizendo que era castigo de Deus, ora dizendo que a solução estava num futuro distante, escatológico, que só seria alcançado se o presente, sofrível presente, fosse carregado de obediência, ofertas e sacrifícios. O jugo (ou peso) era dobrado, oprimidos pelos de fora (em nome de César), oprimidos pelos de dentro (em nome de Deus). Aqueles que ali estavam, com Jesus, no Jardim das Oliveiras, não esperam outra coisa de seu mestre que não fosse libertação. Ele era o filho de Davi, o rei que havia de vir, e que, finalmente, devolveria o reino a Israel. Aí, quando a gente volta a gente entende frases (ou perguntas) como: "é agora que restaurarás o reino?", "é nesse tempo?", "Quando será?" Entendemos aquelas espadas de Lucas 22:36ss. Espadas depois da ceia. Tudo passa a ser uma coisa só. Jesus ali, não mais na Galileia, onde causava pouco incômodo, mas em Jerusalém, na cidade do Rei, na cidade de Deus, só podia ser uma coisa, só podia ser agora. Adendo: nós nunca daremos conta do que Pedro, Tiago e João, os três mais próximos de Jesus, sentiam naquele momento. Nem deles, nem dos outros nove (mesmo Judas), nem dos outros sessenta ou setenta seguidores de Jesus, sua primeira comunidade. Não podemos dar conta, pois não vivemos e nem viveremos uma situação tão pesada e crítica como a deles. Nem mesmo saberemos os sentimentos de Jesus. No verso 38, do mesmo capítulo onde estamos, ele diz: "A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal. Fiquem aqui e vigiem comigo". Ele também sabe, aquele momento seria decisivo para ele e para os seus. Ali estava a decisão de algo que começou na beira do rio Jordão, com a famosa frase: "o Reino de Deus está próximo".  

Todavia, por maior que fosse a causa dos discípulos de Jesus, a libertação de um povo, de Israel, deles mesmos. O Reino, do "Reino de Deus está próximo", discurso de João Batista, discurso de Jesus, era ainda maior, uma causa maior. Aquela era uma causa humana e para toda a humanidade: a libertação de toda aquele e de toda aquela que, de qualquer forma ou de alguma forma, se torna escravo. Se há alguma coisa pela qual se esforçar, se há alguma coisa pela qual lutar, se há alguma coisa pela qual morrer, essa coisa (ou causa) é a libertação humana, libertação da pessoa humana. Jesus sabe que o problema não é Roma. O problema é a política de controle, opressão e expropriação. Isso está em Roma, está em Brasília, está em todas as instâncias de governo, está no trabalho, está na igreja, está dentro de casa, está em todas as relações de poder, está na gente. Jesus também sabe que o problema não é Deus. O problema é a religião que enclausura Deus e cria regras para a espiritualidade, que determina quem está dentro e quem está fora, quem faz parte e quem não faz, quem tem a benção e quem não tem. Se há alguma coisa pela qual lutar é por isso, ou melhor, pelo fim disso tudo. Se há alguma coisa pela qual lutar, que seja pelo Reino e por sua justiça. Por liberdade e por vida. 

Então um deles puxa a espada (verso 51), Pedro, segundo João (18:10), e fere "o servo do sumo sacerdote, decepando-lhe a orelha". Então, "disse-lhe Jesus: (verso 52) "Guarde a espada! Pois todos os que empunham a espada, pela espada morrerão"". Jesus não usa espadas em sua luta. Ele prefere a cruz. Quem chega ao poder através da espada, através da espada perderá o poder. Pois espada só gera mais espada. Violência só gera mais violência, estupidez mais estupidez. E o Reino de Deus não é assim: "Você acha que eu não posso pedir a meu Pai, e ele não colocaria imediatamente à minha disposição mais de doze legiões de anjos?" (verso 53). Mas não é esse o caminho do Reino. 

A cruz, além de seu elemento vicário, nela esteve "o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo", além de seu elemento salvívico, entendemos e acreditamos nisso, possui um caráter de resistência. A cruz também foi arma de resistência. Quem é que pode derrotar alguém que já decidiu pela entrega, "pela derrota"? "Ninguém a tira de mim (ele falava sobre a sua própria vida), mas eu a dou por minha espontânea vontade" (João 10:18). A cruz foi o lugar onde culminou todo o discurso do Reino: a outra face, a túnica e a capa, a segunda milha, a compreensão de que para uma causa maior, o método precisava ser único, e foi. Não era e não foi derrotismo. Foi uma outra via, um outro caminho, uma outra ação. Foi algo contra toda a cultura (tanto a deles quanto a nossa), contra todo o espírito do mundo (deles e nosso), que conclama a vitória a qualquer custo, vitória e sucesso. Foi algo contra todas as ideias de luta e conquista. E foi algo tão forte, mas tão forte, que ainda ecoa entre nós enquanto proposta cristã, do ser cristão: "Jesus dizia a todos (Lucas 09:23-24): "Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa, este a salvará"". Eis o caminho. Em verdade, o início dele, apenas o início. Depois veio a ressurreição, mas sobre isso falaremos em um outro momento. Que Deus nos abençoe.

domingo, 7 de outubro de 2012

Um poder libertador: Atos 03:01-10


(Reflexão feita na Igreja Batista em Barão Geraldo no dia 07/10/2012)

Apesar de já existirem no livro de Atos, os Atos dos Apóstolos, em seus capítulos anteriores, enquanto narrativas, alguns acontecimentos extraordinários, como a ascensão de Jesus aos céus, no capítulo primeiro, e a divisão das línguas ou o dia de pentecostes, no capítulo segundo, eu entendo que o primeiro sinal miraculoso pertencente de forma exclusiva aos discípulos de Jesus esteja aqui, na narrativa que acabamos de ler, Atos 03:01-10. Pois, para mim, a cura efetuada por Pedro e João ali, na porta do templo, às três horas da tarde, na hora da oração, tendo como beneficiário um aleijado de nascença, é o ato miraculoso que inaugura algo diferente nos caminhos do Reino de Deus, é o início efetivo do ministério apostólico. É o começo de um novo tempo, de uma nova etapa que agora se fará sem a presença física de Jesus. E isso se dá (ou se deu), enquanto legitimação do caminho profético dentro do Reino de Deus, da mesma forma como se deu em Jesus. Pois o ministério de Jesus é também inaugurado por um ato miraculoso, a transformação de água em vinho em João capítulo 02, tradicionalmente conhecido como o primeiro milagre de Jesus, até porque o próprio evangelho de João aponta para isso: "Este sinal miraculoso, em Caná da Galiléia, foi o primeiro que Jesus realizou" (João 02:11). Mesmo e apesar dos outros evangelhos nem mesmo fazerem menção a esse acontecimento. Em Mateus o miraculoso vem depois do profético-palavra, mais como confirmação, Mateus 08. Em Marcos tudo é muito rápido, tudo muito misturado. Em Lucas está uma mistura de Mateus e Marcos, o miraculoso como confirmação da palavra profética.    

Todavia, é o ato miraculoso que inaugura o ministério (evangelho de João), que legitima (os Sinóticos) o profeta em seu caminho profético. Inaugura ou legitima, não importa. O profético, nesse sentido inicial, precisa estar vinculado ao extraordinário, ao milagre, ao miraculoso. Voltando a Atos, no capítulo primeiro, vemos que a ascensão, como ato miraculoso, ainda é ato de Jesus. E no capítulo segundo, na descida do Espírito Santo, o pentecostes, o ato é do Espírito. É apenas no terceiro capítulo que o ato se torna apostólico. Pedro e João possuem agora o mesmo status profético de Elias e Eliseu, ambos do Antigo de Testamento, e o mesmo status profético do próprio Jesus. Agora é o tempo apostólico, é o tempo dos discípulos de Jesus. E é o ato miraculoso do capítulo 03 que inicia isso. Sem ele, não haveria começo.

E aqui eu preciso parar e começar a confessar alguns pecados. Pecados meus, um em verdade. É tentador compreender que o milagre em si mesmo é aquilo que dá ao profeta toda a autoridade, já que o miraculoso carrega em si uma enormidade de poder. Imaginem só poder sair por aí com o poder de dizer "levanta e anda", ou "anda", ou "veja", ou "fale", ou "ouça". Ser portador da cura imediata. Seria "show de bola". Extraordinariamente "show de bola". Pois todo ato miraculoso causa espanto, admiração e medo, pois revela poder, e quanto poder. Quem não se tornaria admirador de alguém que detenha tal poder? Em Marcos 4, depois de Jesus acalmar a tempestade, os discípulos, "apavorados", diz o verso 41, "perguntavam uns aos outros: "quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?". Da mesma forma, o texto que acabamos de ler revela o mesmo espanto e a mesmo admiração, como em qualquer outro texto que segue a um acontecimento que foge ao comum: "todos ficaram perplexos e muito admirados com o que lhe tinha acontecido" (verso 09, Atos 03). Quem seriam aqueles que estavam, agora, depois da morte de Jesus, fazendo aleijados andar? Quem? Mereceriam ser ouvidos, mereceriam louvor pelo que fizeram. É por isso que a multidão, da mesma forma como se aglomeravam ao redor de Jesus, vai se reunir ao redor deles a partir do verso 11. Quem sabe outros feitos miraculosos não se fizessem necessários ali, outras curas, e aí a coisa seria até mais rápida e mais fácil para os discípulos, para a expansão do evangelho, para o ganhar almas, para se fazer e ser igreja de uma forma mais consistente. Tudo isso seria tentador, muito tentador.

Quando eu vim de Santa Fé do Sul, em 1997, e agora o meu pecado eu confesso, vim para estudar teologia e me tornar pastor, vim me sentindo como Pedro e João subindo ao tempo, só na expectativa de encontrar um aleijado, ou alguns aleijados, talvez uns cegos também, mudos, surdos, endemoninhados. Seria só estender as mãos. Mortos não, ressuscitar demandaria um pouco mais de experiência e santidade. Mas eu estava me sentindo, "levanta e anda". Poder. No entanto eu já me perdoei por esse pecado, eu só tinha 17 anos. Espero que quem conviveu comigo nesse mesmo período também tenha me perdoado.

Levei muito tempo para compreender o que agora falo a vocês. Pedro e João não estavam se sentido como eu me sentia achando que sentia como eles. O sentir deles era outro. Era outro sentimento. Era outro espírito. Era outro poder. Levei muito tempo para compreender o que de fato eles tinha e estavam oferecendo: "não tenho prata nem ouro, mas o que eu tenho, isto lhe dou", libertação. Tiro você dessa condição à margem. Você não vai ficar mais à porta, você vai lá para dentro com a gente. Vai participar: "E de um salto pôs-se em pé (este é o verso 08) e começou a andar. Depois entrou com eles no pátio do templo, andando, saltando e louvando a Deus". Não era um poder miraculoso, era um miraculoso poder, o poder de libertar, o poder libertador do evangelho, era o Reino de Deus. E quão estranho é isto: o poder de libertar. É o poder em sua forma contraditória, é o poder único e final, pois quando se liberta não há mais nem necessidade e nem razão para o poder, a não ser o poder de ser livre. É isto o que eu tenho, é isto o que eu te dou, seja livre por meio de Jesus.

Levei muito tempo para entender isso, mas eles, Pedro e João, também. Hoje eu já não me sinto (me sentindo) mais como Pedro e João. Mas sinto que deveria sentir. Ter deles o mesmo sentir, o mesmo sentido, o mesmo sentimento, o mesmo espírito. Ter o que eles tinham e ofereceram. Tirar quem está à margem e por no meio. Tirar quem está fora e por dentro. Tornar participante quem jamais será escolhido, pelo menos não pelos meios comuns. Mostrar um outro caminho, uma outra possibilidade a quem só consegue ver e ter o que já vê e o que já tem. Olhar bem para a realidade que está ao redor, bem e bem de perto quem está perto, e também ser visto, ser possuído por misericórdia  e compaixão e ajudar conforme for possível: "Pedro e João olharam bem para ele e, então, Pedro disse: "olhe para nós!" O homem olhou para eles com atenção, esperando receber deles alguma coisa" (verso 04). E recebeu. Aquele homem, cujo nome não fora nem citado, depois dali não mais vai voltar a ser quem era, àquela rotina de desde a infância, de mendigar, de se humilhar, de ser visto como alguém que é digno de pena, de esmola, do que sobra. Ele não vai ficar mais à porta, mesmo que ela seja "formosa". Ele não será mais excluído, nem pela sociedade que sempre o deveria ver como estorvo, como imagem de desconforto, como pela religiosidade, que via nele a imagem do pecado, de um pagamento por um culpa dele ou de outro alguém. Não mais. Pois agora ele faz parte de algo maior, maior do que ele, maior do os dois que estão ali diante dele, maior do que o templo. 

Eu não estou me sentindo mais, ainda bem. Aprendi. Mas ainda sinto que deveria sentir o desejo pelo poder, o poder de ser livre e proporcionar libertação. Assim como Pedro, assim como João. Subir ao tempo na hora da oração e encontrar quem quer que seja pelo caminho, e ser, pelo menos, útil. Espero também que esse seja também o seu sentir, tanto como pessoa humana, quanto como um cristão humano. Tanto quanto individuo envolvido em sua própria vida, quanto como comunidade de fé, de fé cristã, preocupado com o seguimento de Jesus, com o caminho do Reino de Deus, do Reino próximo.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sussurros Eclesiásticos: Mateus 10:24-31


A reflexão que segue, e que se segue há muito tempo, começa de uma leitura despreocupada no evangelho de Mateus, feita em casa, numa mesa, junto com um grupo de amigos e amigas todas as quintas. Foi reflexão em Barão Geraldo, na Igreja Batista de lá, no último dia 23, e na Igreja Batista em Holambra, no último dia 30. Agora posto o texto. Tinha caráter de estudo, sem muitas pretensões aplicativas. Mas, como toda leitura já é uma releitura, o texto se aplica, quase que de forma automática, pois todo texto lido aponta sempre para fora de si, e esse "si", agora, somos nós, seus leitores. Pois bem...!

O texto lido, oito versículos, fazem parte de um conjunto de palavras de Jesus, recomendações em verdade, ao grupo específico de seus discípulos, os doze, que serão enviados para um período de pregações, milagres, curas e libertação (verso 08), que deverá se dar pelas cidades, cidadelas e vilas do contexto da Galiléia (creio eu, baseado em Mateus 11:01), principalmente onde não haja muitos gentios ou samaritanos, já que a recomendação, no verso 05, é bem clara quanto a isso, nem gentios nem samaritanos, mas apenas aos judeus, verso 06, os da família. No verso 07 está a ordem para o discurso, é o Reino. O verso 08 é o que precisa ser feito. E aí os dois se complementam, 07 e 08, é o Reino de Deus em palavras e ações, é o Reino de Deus em sua completude, inteiro. Mas, sobre isso, poderemos conversar em outro momento, em uma outra oportunidade, por agora, o que interessa são nossos oito versos lidos, que começam no verso 24.  

E no que nos interessa, no nosso texto especificamente, as palavras de recomendação são básicas. Começam de uma forma básica, e não básica no sentido simplista, mas básica no sentido de ponto de partida: basta a vocês (os discípulos) serem iguais a mim (e é o Cristo que fala), vejamos os versos 24 e 25: "O discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e o servo, como o seu senhor". Eis aí o princípio da missão. Bastava ao discípulo, aos doze em verdade, dizerem e fazerem o que Jesus havia dito e feito até aquele momento. Palavras do Reino, ações do Reino. Isso é básico. É o ponto de partida do ser cristão, de ser discípulo do mestre Jesus. No final do verso 25, ironicamente, Jesus faz referência ao que aconteceu no verso 34 do capítulo 09, é preciso ler para entender: "Se o dono da casa foi chamado Belzebu (por ter libertado alguém pequeno e oprimido de alguém maior e opressor), quanto mais os membros da família". Basta a vocês dizerem o que eu digo e fazerem o que eu faço e todos entenderam o verso 07, que o Reino de Deus está próximo, que ele está se fazendo. Basta a vocês seguirem o meu caminho e as coisas certamente vão acontecer, tanto para o bem, pois muito gente vai ser libertada, quanto para o mal, pois os discípulos serão perseguidos (versos 28ss).

Mas não é para se temer (verso 26), pois tudo o que vinha sendo feito às escondidas, pelo menos essa foi a tentativa: por vezes Jesus pediu segredo aos que foram currados, e, talvez, a maior parte de seus ensinamentos ainda estive oculto, pois eles tinham sido dados nas rodas de conversas particulares entre ele e os seus; tudo isso, agora, deveria ser dado ao mundo, e dado de uma forma clara e convincente: "O que eu lhes digo na escuridão, falem à luz do dia; o que é sussurrado em seus ouvidos, proclamem dos telhados" (verso 27). Abro um adendo aqui: que frase bonita! Fecho meu adendo. Pois o Reino de Deus começa quando os discípulos do Senhor do Reino transformam o seu convívio com Jesus num convívio com pessoas humanas, com gente de lá de fora, gente pequena (pequeninos) e oprimida, que precisa "mais do que depressa" de libertação. Pois o Reino de Deus começa quando a conversa tida ao redor da fogueira, que iluminava e aquecia não apenas os olhos e o corpo, mas acima de tudo a mente e alma, quando essa conversa se faz presente na luz do cotidiano, na vida comum, lá em casa, lá no trabalho, lá na escola, onde o real da vida quase sempre pesa mais do que a esperança e o sonho juntos. A conversa noturna, mesmo que apenas aquela que é dominical, tem que se fazer presente no dia, na história real, na vida. Do contrário, não haverá Reino. É por isso que o que foi sussurrado ao pé do ouvido, tem que ser gritado do alto do telhado. As notícias do Reino são para todos. Elas transformam o opressor em culpado, e o oprimido em um ser liberto: "Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça, dêem também de graça" (verso 08). "Não tenham medo..." ele repete isso no verso 28, e volta a falar de perseguição, e logo depois as recomendações acabam.   

E aí! E aí a gente só pode imaginar, pensar que eles saíram, compreendendo que o caminho era aquele, foram de cidade em cidade, que em verdade, para nós hoje, seriam apenas pequenos aglomerados de casa aqui e ali. Fizeram o que Jesus falou, transformaram a ideia do Reino em um Reino que se fez verdadeiramente próximo, o que eram conversas noturnas ao redor da fogueira virou discurso pela manhã, o que eram apenas sussurros ao pé do ouvido se tornaram gritos no telhado. E aí, o tempo passou, e a gente tem que continuar imaginando, eles voltaram exultantes pelo que haviam feito, conforme Lucas 10, texto que me parece possuir um paralelo muito forte com o texto que lemos, verso 17: "os setenta e dois voltaram alegres e disseram: "Senhor, até os demônios se submetem a nós, em teu nome". Está feito, o Reino realmente está próximo, porque se fez próximo.

E o tempo passou novamente, e os discípulos voltaram para as conversas ao redor da fogueira, para as falas em sussurro, sussurros eclesiásticos, conjecturando sobre o sexo dos anjos ou sobre suas próprias idiossincrasias, pensando e falando sobre aquilo que pertence somente a si próprios. Criaram até um linguajar próprio, uma língua alienígena para poder continuar se comunicando com sussurros mesmo não estando ao redor da fogueira. É a língua que só os iniciados compreendem. E o tempo passou tanto que eles (os discípulos) ficaram confusos, mais confusos ainda, e passaram a achar que o discurso sobre o Reino era realmente o próprio Reino, um conceito para ser sistematizado, que o Reino próximo era aquele ali, da noite e da fogueira. Tornaram-se endógenos, e o Reino virou igreja.

No entanto, enquanto os discípulos de Jesus sussurram ao redor da fogueira, longe de suas preocupações eclesiásticas, de sua espiritualidade e pastoral ensimesmada, os lobos uivam, uivam, rosnam e latem, devorando os pequeninos. Oferecem libertação em troca de dinheiro, quando era para oferecer de graça o que foi dado de graça. São "simonistas" ao extremo, à luz do dia, à luz da televisão, na "cara" de todos. Sem nenhuma piedade eles devoram gente que, como em qualquer multidão, vive como se estivessem sem pastor. Vivem da miséria dos outros, e não se sentem miseráveis por isso. Não sentem nem vergonha. Agora os lobos têm outra cara também, e estão uivando pedindo votos. Alguns uivam imitando harpas angelicais ou (órgãos) pianos evangélicos. Uivam hinos de louvor. E há tantos outros lobos lá fora, tantos quanto você puder imaginar, talvez até mais do que você possa imaginar, tantos diferentes, que seus uivos, rosnados e latidos se misturam, mas todos com um único propósito: oprimir e devorar, quantos forem possível. Não há culpa, não há Reino, não há libertação. Não enquanto os discípulos de Jesus estiverem sussurram ao redor da fogueira. Porque o Reino não é e nunca foi para dentro, ele é para fora, ele é lá fora. É na luz do dia, é falar tão alto quantos os uivos, é falar contra os uivos. É enfrentar os lobos para proteger os pequeninos. E, "não tenham medo", disse Jesus. Pois o Reino é também enfrentamento (Mt 10:34). Todavia, é preciso ler novamente o verso 27, e pensar, e falar, e fazer o Reino. Como? Simplesmente sendo como ele foi. O servo como seu senhor, o discípulo como o seu mestre.