segunda-feira, 15 de julho de 2013

Caminhos e Caminhantes: Lucas 24:32

Eu gostaria de, hoje, ler apenas um verso com vocês, Lucas 24:32: "Não estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos expunha as escrituras?" Apenas esse verso. É com ele que eu encerro um caminho.

Quando olhamos para os evangelhos, especificamente para os seus finais, logo depois da morte e ressurreição de Jesus, encontramos uma quantidade de versículos muito pequena que relatam os acontecimentos que se deram entre a morte e ressurreição de Jesus e sua ascensão. Mateus, por exemplo, reserva 20 versículos para isso, e termina seu relato com aquilo que passou a ser chamado pelas tradições missionárias de "A Grande Comissão", um tipo de últimas recomendações. Daí nós encontramos no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo primeiro, mais 11 versos para descrever a ascensão, que é quando Jesus diz suas últimas palavras de forma pessoal aos seus discípulos, e daí volta para o Pai. E nesse mesmo capítulo de Atos, Lucas diz que Jesus ficou com eles por quarenta dias (verso 03), falando-lhes do Reino de Deus. Paulo, em sua primeira carta aos coríntios, 15:05ss, diz que depois da ressurreição, Jesus apareceu aos discípulos, aqui e ali, e, em uma vez, apareceu a mais de quinhentas pessoas, todas juntas, o que seria um número razoável de testemunhas ainda vivas quando Paulo escreveu isso.

Mas é João e Lucas que reservam encontros marcantes com o Cristo Jesus ressurreto. Além de Tomé, do diálogo de Jesus com ele, João, no capítulo 21, o último de seu livro, narra um dia de pescaria memorável, certamente uma das narrativas mais bonitas dos evangelhos, tem peixe assado, pescaria de barco, fogueira à beira mar, e Pedro. Já Lucas escolhe dois discípulos desconhecidos (um deles se chama Cleopas, verso 18, mas para a história bíblica são anônimos) que estão caminhando de Jerusalém para Emaús, onze quilômetros (segundo o verso 13 de Lucas 24), duas hora e meia - mais ou menos - de caminhada, um tempo que estava sendo gasto em um diálogo sobre os últimos acontecimentos (verso 14), até ali a morte de Jesus.

Em princípio, para mim, João e Lucas estão preocupados, dentro desse espaço de tempo: a morte e ressurreição e a ascensão de Jesus, de tratar de questões que estavam para além da ideia de testemunhos da ressurreição. João é o perdão dado a Pedro. Lucas é aonde eu quero chegar.

Os dois caminhantes que vão de Jerusalém para Emaús exemplificam em sua caminhada e diálogo o sentimento de todos aqueles e aquelas que acabaram de perder os "sentidos" da própria caminhada. Com a morte de Jesus, há um certo ar de derrota na vida de cada um deles. Antes havia um novo propósito ou proposta, havia uma nova possibilidade, havia um novo jeito, uma nova apreensão, sonhos e esperanças, uma nova vida, e, de repente, tudo aquilo havia acabado. Para nós é fácil olhar de fora e principalmente depois, e fazer uma leitura simplista e errada dos sentimentos deles: tristeza desnecessária, medo excessivo, não entenderam nada, leram errado, faltaram com a fé, desistiram de tudo muito rápido. Ver de fora é assim. Já eles viveram as coisas como elas foram, de dentro e por dentro. Por isso estavam caminhando (fazendo seu caminho) como tinham que caminhar, eles dois. E entre esse tempo de morte e esse tempo de ressurreição, e depois de ascensão, eles, discípulos anônimos, caminhantes, exemplificaram um sentimento coletivo, primeiro dos apóstolos (os mais próximos e esperançosos), depois dos discípulos (que seguiam ao lado), e por fim da primeira comunidade de fé (que ansiava pelo Reino de Deus e uma nova vida: "e nós esperávamos que era ele que ia trazer a redenção a Israel" (verso 21)). E esse não era um exemplo e um momento bom. E tudo isso precisava ser tratado, e foi. Jesus aparece e diz, verso 17: "Sobre o que vocês estão discutindo enquanto caminham? Eles pararam, com rostos entristecidos".         

Sabe quando está tudo desmoronando ou já desmoronou e alguém chega para você e diz: "o que aconteceu?" Sabe?! Aí tem que parar, a tristeza volta e se expressa no olhar, é vista no rosto. Pois há momentos na história da gente, de qualquer um de nós, de cada um de nós, em jornadas ou caminhadas carregas de desalentos, decepções, desânimos etc, que a última coisa que desejamos é que o que passou se repita - ou mesmo e mais ainda - que seja lembrado. É melhor deixar o passado no passado. É melhor tentar seguir por outro caminho, em um outra direção. É melhor esquecer para poder continuar sendo, indo. É exatamente isso que aqueles dois caminhantes da estrada de Jerusalém a Emaús, caminhantes da vida, estão tentando fazer. É isso o que a gente tenta fazer quando o caminho que se apresenta se dá no desconforto das angústias e tristezas da vida: sonhos interrompidos, esperanças mal logradas, decepções. Tentamos ir para frente mesmo que esse para frente seja um caminho para trás, de retorno, de fuga ou coisa parecida, pois caminhar, não importando a direção, também é um exercício para a mente, pois o que para trás fica, vai ficando para trás mesmo. Todavia, a pergunta de Jesus no verso 17 suscita uma resposta, e toda a história está lá e sempre estará, pois é difícil fugir do passado, nós somos memória, a nossa memória.    

Então, diz Lucas, no verso 18, que o discípulo chamado Cleopas respondeu a Jesus: "você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?" Gosto de outra tradução que diz "estrangeiro". Hoje seria algo do tipo: "de que planeta você veio?" Mas Jesus quer a memória: "que coisas?" Que coisas aconteceram que os conduziram até àquele momento? Até àquele caminho? Até ali? O que aconteceu? Falem para mim o porquê de vocês estarem aqui. Eles então desabafaram a vida.

Deus parece, às vezes, desejar a nossa história, assim como nós a vemos. Ele quer ouvir de nós a nossa própria memória, a nossa própria percepção do que nos aconteceu e do que aconteceu ao nosso redor que nos conduziu ao caminho que agora trilhamos enquanto pessoas, enquanto família, enquanto comunidade de fé. Deus quer saber de nós, de você individualmente, de mim individualmente, a razão de nosso caminho. "Que coisas?" não é um pergunta que busca pelos fatos, mas pelo como vemos os fatos. Eles falam, Jesus fala. Daí chegamos ao verso 32.

Por mais difícil que seja o caminho, caminho causado por história pesadas, embrulhadas, misturadas e tristes, o que de fato importa não é caminho, mesmo que ele seja um caminho de retorno, de alguém que lutou e perdeu a luta, de alguém sonhou e assistiu o fim do seu sonho, de quem estava cheio de esperanças e caiu, mesmo que ele seja um caminho de fuga, de distanciamento, mesmo que seja um caminho feito cabisbaixo, se houver ainda, mesmo que pequena, uma chama no coração do caminhante, ainda há e sempre haverá esperança. Eu consigo ver a expressão dos olhos daqueles dois discípulos depois de Jesus partir o pão e eles o reconhecerem (versos 30 e 31 de Lucas 24). Eu consigo sentir a beleza e a profundidade da frase-pergunta deles: "não nos ardia (queimava) o coração quando ele nos falava no caminho?" É a alegria de alguém que reencontra em sua história, em sua memória, nos fatos que estão e sempre estarão lá, eles não mudaram, eles não se desfizeram, eles são os mesmos e continuaram sendo, "que reencontra" uma outra forma de ver, de ver o passado, de ver o caminho, de ver a vida, de ver o que há pela frente.

Diz o verso 33 que, imediatamente, essa é a expressão de Lucas, eles voltaram. Voltaram pelo mesmo caminho, mas em outra direção, voltaram os mesmos dois, mas, certamente, com outra percepção de tudo e do todo, com um outro ânimo e um outro espírito. Pois, não é o caminho que faz o caminhante, mas sim o caminhante que faz o caminho, e o faz a partir de suas histórias, de suas memórias, de seus sentidos e sentimentos (esperanças e sonhos), de seus olhos, os nossos olhos, novos e melhores olhos.