segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Pastores e Magos: Lucas 02:08-20


Lucas diz em seu evangelho que no momento do nascimento de Jesus havia na região próxima de Belém - nos campos próximos, diz ele - alguns pastores que cuidavam de seus rebanhos (02:08), talvez como costumeiramente faziam. Daí surge um anjo, envolto em luz, que dá medo, mas que traz a eles a notícia do nascimento de Jesus, “as boas novas de grande alegria” (10), para eles e para todo o povo. Depois que os anjos vão embora - depois do primeiro apareceram muitos outros dizendo “glória a Deus nas alturas e paz na terra a quem ele quer bem” (13 e 14), Lucas diz que os pastores resolvem ir ver o menino, e vão (15 e 16). Correndo vão a Belém, e lá encontram José, Maria e o menino Jesus, como dito pelo anjo, envolto em pano e deitado na manjedoura.

Mateus - e aí nunca vamos saber se são os mesmos ou se são outros - diz que no momento do nascimento de Jesus, magos vindos do oriente chegaram a Jerusalém, procurando pelo menino Jesus. Vieram guiados por uma estrela que lhes apontava o caminho do nascimento do novo rei dos judeus: “onde está o recém-nascido rei dos judeus?” (02:01). A estrela então os guia até o local exato do nascimento de Jesus (09). Diz o verso 10 e 11: “Quando tornaram a ver a estrela, encheram-se de júbilo. Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.”

Como eu disse, fica difícil precisar se Lucas e Mateus estão falando da mesma experiência ou se estão contando acontecimentos separados, diferentes. É difícil saber se os magos, vindos de uma terra distante, são os pastores, moradores e trabalhadores dali mesmo, da região. Pois os magos, descritos por Mateus, eram reis, certamente poderosos em conhecimento (são astrólogos), sabedoria e posses - se eram três eu não sei. Já os pastores, descritos por Lucas, eram pobres, trabalhadores incansáveis numa tarefa árdua de encontrar comida e água para seus rebanhos numa terra árida e perigosa. Ainda há o fato de os magos terem sido guiados por uma estrela, símbolo do conhecimento científico que eles possuíam, e os pastores por um anjo, símbolo de um rico imaginário religioso que a eles pertencia.

No entanto, ambos, pastores e magos, Lucas e Mateus, estão diante de um encontro com Jesus. Eles esperaram por ele, buscavam por ele, e, finalmente, o encontraram. A nobreza, guiada pela sabedoria, pela leitura precisa das estrelas, dos astros, doadora de presentes custosos, no encontro com Jesus se dobrou e reconheceu o menino (Mateus 02:11). O comum, guiado pela necessidade da fé, sem nada para oferecer, no encontro com Jesus também se dobrou e também reconheceu o menino (Lucas 02:17-20). Era ele. O Cristo menino, em seu Natal, sem dizer palavra nenhuma, em seus primeiros encontros, já ilumina os caminhos, de ricos, sábios e poderosos, bem como da gente comum.

Aquela luz é o que agora ilumina. A luz do menino. É Natal. Os magos, vindos do oriente, trazem não apenas presentes, mas trazem também a esperança de encontrar aquele que pode mudar todos os caminhos, não só o rei dos judeus, mas também aquele que vai inaugurar o “Reino dos Céus”, que vai aproximar em vez de distanciar, que vai aplainar em vez de impossibilitar, que vai criar justiça e não mais opressão. Ele vai mostrar uma nova forma de ser senhor; de usar da sabedoria, justa e direta para aqueles que precisam de seu ensinamento; de usar do poder, em benefício dos outros e não de si mesmo; de usar da força, que não mais será para machucar, mas sim para criar alívio e paz.

Os pastores, vindos dali mesmo, vieram de mãos vazias, mas cheios também de esperança, esperança de que seus dias de trevas fossem transformados em luz. Eles queriam o fim injustiça, o fim da opressão, o fim da tristeza de ser quem eram, o fim de uma vida vazia que girava ao redor de um mesmo e infinito descaminho. Eles queriam boas notícias, notícias de paz e alegria, “boas novas” em meio a tanta coisa ruim que poderia ser compartilhada. E aquele menino era isso tudo. Para os magos e para os pastores o menino se fez luz em meio às trevas. João mostra isso muito bem: em Jesus [...] as trevas vão passando, e já brilha a verdadeira luz” (I João 02:08).

Agora eu não sei se vai ser a sua sabedoria e o seu conhecimento, ou se vai ser a sua necessidade de fé que vai conduzi-lo ou conduzi-la até o menino Jesus. Se vai ser a estrela ou o anjo, não importa. Mas se você for conduzido até lá - em verdade se você se deixar ser conduzido, seguir a estrela, ouvir o anjo - você vai se deparar com aquele que, sem palavras, pode mudar todos os seus caminhos. Pois todo o verdadeiro encontro com Jesus muda tudo. “Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, [...]” (Lucas 02:20). “Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram” (Mateus 02:11). Não é possível sair igual. O menino é a luz.

Neste Natal encontre-se com ele, veja-o e transforme-se. Tenha esta esperança: o menino envolto em pano e deitado numa manjedoura pode fazer de você alguém diferente. Ele pode tirar você do desespero e da preocupação e colocá-lo num lugar de paz, de onde nada nem ninguém pode te arrebatar. Ele pode arrancar você da incerteza, da dúvida e do medo, e colocá-lo no ambiente da fé, onde tudo é possível. Ele pode tirar você das trevas da sua vida e conduzi-lo à sua maravilhosa luz. É o menino. É a luz. É Natal.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Espera e Esperança: Lucas 02:22-40

Pouco tempo depois do nascimento de Jesus, ainda como uma criança recém nascida, ele, segundo o Evangelho de Lucas, para cumprir muito daquilo que já havia sido anunciado pelas escrituras, pelos profetas, passa por dois momentos de encontro - ele precisa se encontrar com algumas pessoas. E esses são dois encontros marcantes em sua história, momentos para pontuar. Mas, lendo Lucas, vemos que são marcantes principalmente e de forma muita especial para as personagens que fizeram parte deles. O primeiro é com os pastores (de Lucas) ou com os magos (de Mateus), que se deu, conforme os evangelhos, dentro do contexto de seu nascimento, como recém nascido ou como uma pequena criança. É quando ele ganha os seus primeiros presentes. E o segundo encontro é o que lemos, com Simão e Ana, no dia de sua consagração. 

Segundo Lucas, depois do cumprimento dos dias de purificação, conforme a lei, José, Maria e Jesus deixaram Belém, vilarejo próximo à capital Jerusalém, e foram para lá, para, também, conforme a lei, consagrar o menino Jesus a Deus, é o verso 23: “como está escrito na Lei do Senhor: "Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor"”. Ali eles oferecem o sacrifício requerido, duas rolinhas ou duas pombinhas, oferta e sacrifício de gente pobre, conforme eles eram, conforme era previsto. Tudo foi feito conforme a antiga lei, a lei de Moisés, conforme os costumes do povo, conforme tinha que ser feito. O que provava a preocupação dos pais de Jesus com o cumprimento das prescrições, e também a participação deles na comunidade de fé deles. Eles fazem parte, são parte, cumprem com a parte deles. Só depois disso tudo, da consagração comum, aparecem Simão e Ana (personagens exclusivos de Lucas), que vão se encontrar com Jesus, e que, nesse encontro, serão profundamente marcados. Aqui começa nosso caminho em reflexão.

É difícil identificar Simão e Ana, num primeiro momento. Simão talvez fosse um sacerdote do baixo-clero do templo de Jerusalém, um sacerdote sem muita importância, que estava ali exatamente para receber e atender os que a ele fossem comuns, gente também sem muita importância, como a família de Jesus, gente simples, gente comum. É Simão que o toma nos braços e ora, versos 28ss. No entanto, Lucas não diz que ele era sacerdote. Apenas diz que ele era “justo e piedoso” (verso 25), e que “esperava”. Por outro lado, talvez Simão fosse um tipo de sábio – ser justo e piedoso era característica dos sábios antigos, que ficava por ali para ouvir as pessoas e as aconselhar conforme a lei e a vontade de Deus. Sua idade avançada o ajudava nisso, pois, naquele tempo, diferente de hoje, uma voz mais velha era, na maioria das vezes, escutada. É um homem piedoso, de uma espiritualidade sensível. Segundo o texto ele é impelido pelo Espírito Santo para ir ao templo encontrar-se com Jesus (verso 27). A outra era a Ana, profetisa. Ela é, conforme o texto, “filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era muito idosa, tinha vivido com seu marido sete anos depois de se casar e então permanecera viúva até a idade de oitenta e quatro anos. Nunca deixava o templo: adorava a Deus jejuando e orando dia e noite” (versos 36 e 37). Dentro do costume daquela época, a mulher que ficasse viúva precisa de um homem para protegê-la. Assim, ou voltava para a casa do pai, ou ficava sobre a guarda de um filho homem, geralmente o mais velho, ou se casava outra vez, o que era raro, ou ia viver no templo, para trabalhar e ser sustentada pelos serviços do templo, foi o que a Ana fez. Ela é também um tipo de conselheira, provavelmente de mulheres e mães. É uma velha sábia. Piedosa e devota. Torna-se ali a primeira anunciadora de Jesus, a primeira pregadora: “deu graças a Deus e falava a respeito do menino a todos os que “esperavam” a redenção de Jerusalém” (verso 38).

Por outro lado, se é difícil identificar quem são Simão e Ana, é fácil perceber o que eles são, são símbolos de uma espera que acabava ali. O Jesus menino é ali, também e num primeiro momento, um fim. Lucas foi de uma felicidade incrível quando escolhe como texto, para o texto, para sua leitura do Jesus menino que vai terminar um ciclo de espero, dois velhinhos, Simão e Ana. Não há melhor exemplo de espera do que uma pessoa idosa. Eles estão ali, Simão e Ana, conscientes de seu mundo, conhecedores de suas histórias, viram e viveram tudo aquilo, e ainda estavam vendo e vivendo. É um lindo exemplo. Eles estiveram ali por tanto tempo, e esperavam. A fala do Simão também é linda: "Ó Soberano, como prometeste, agora podes despedir em paz o teu servo. Pois os meus olhos já viram a tua salvação, que preparaste à vista de todos os povos: luz para revelação aos gentios e para a glória de Israel, teu povo" (versos 29-32). Simão tem plena consciência, sua espera acabou. Enquanto isso, a Ana, convida outras e outros que também esperavam para ouvir do menino: “falava a respeito do menino a todos os que esperavam [...]” (verso 38). Talvez dizendo: "a nossa espera acabou". O Jesus menino nos braços de Simão e Ana, dois idosos símbolos de uma antiga espera, torna-se para eles, para muitos os outros lá, e para muita gente ainda aqui, que ainda vivem a angústia da espera, um fim, um acabou, não é mais preciso esperar. Mas não foi só isso, e não é só isso. Quando a espera de Simão e Ana acaba, com o encontro deles com Jesus, algo também começa, ou melhor, nasce. Nasce junto com Jesus, nasce junto com o primeiro Natal, a esperança.

Com toda a certeza Simão e Ana não viram o que Jesus fez, não viram o que aconteceu, o que foi dito por ele, o que ele ensinou e deixou, os milagres, as curas, as palavras, não viram nada além do menino. Mas isso não tirou deles a alegria do momento, acabou, nem a certeza de que a sua espera tornou-se ali uma esperança real.

Em breve vamos nos encontrar com o menino da manjedoura, mesmo que de forma simbólica no dia de Natal. Olhar para ele, e ver nele o fim de nossa espera. Pois olhar para o menino Jesus é desconstruir em nós toda a necessidade daquilo que esperamos, é diminuir as importâncias dadas ao que é e se mostra pouco, é diminuir e desfazer os sonhos vazios. É ver que nele tudo o mais diminui e desaparece, e de que nele o todo se faz e se faz sempre novo. O que ficou para trás ficou para trás. Jesus é o fim da nossa espera. Mas é também mais do que isso. Pois olhar para o menino Jesus é entender e se preencher do novo, é o começo de novo tempo, esperança. É ver começar ou ver nascer a esperança. Para você, para mim, para todos. É redescobrir os sonhos, rever e redescobrir a vida, mudar ou converter os valores, criar e recriar as forças para poder continuar. É ver que o difícil se faz fácil, que o doloroso e o que faz doer – o que machuca – tem cura, que o choro tem consolo, que a vida tem solução, apesar de tudo. Em Jesus, mesmo ainda menino, muita coisa termina (basta agora a você determinar o que termina) e muita coisa começa (agora basta a você reconstruir a sua esperança ou seu recomeço). 

domingo, 9 de dezembro de 2012

Cântico Novo: Salmo 96

"Cantai ao Senhor um cântico novo" (na versão que eu leio, NVI: "Cantem ao Senhor um novo cântico"), essa é frase que fica quando lemos o Salmo 96, ou é a frase que vem quando pensamos no Salmo 96. Pois ouvir ou lembrar da frase: "cantai ao Senhor um cântico novo", é também lembrar do Salmo, mesmo que não se lembre bem de qual Salmo é, pois a mesma expressão também aparece no Salmo 40 (de uma forma diferente) e no Salmo 98 (Ipsis Litteris). Ouvir ou lembrar da frase é também lembrar do cântico que cantávamos. Lembro-me dele pelos "Vencedores por Cristo" (fiquem tranquilos porque eu não vou arriscar cantar). E fica porque é um negócio bonito: "um novo cântico". Fica porque, além de bonito, causa entusiasmo. É algo que gera em quem ouve a frase um certo sentimento de alegria. Faz a gente sorrir. Não dá para explicar, só é possível sentir. Pois é um cântico, é novo e é para cantar, e cantar ao Senhor. É um convite: "cantem", "cantem ao Senhor um novo cântico". Mas e talvez fique - e aqui começa a minha leitura do Salmo - porque nos apresente o "novo".  

A gente está no fim do ano. Dezembro é um mês de transição. É como se fosse possível deixar as coisas velhas para trás (não digo que não dá e nem digo que dá) e fazer tudo diferente, melhorar muita coisa, mudar muita coisa, recomeçar muita coisa, começar muita coisa, terminar muita coisa, mas tudo sempre - se possível - de uma forma diferente. Experimentar o "novo" é algo sempre muito bem-vindo. Pois quase sempre "o novo" cria sentido, cria perspectivas, cria caminhos, cria ânimo, cria e recria sonhos, esperanças. O novo renova. Principalmente quando o que ficou para trás na vida da gente era tristeza e peso. E, em verdade, em grande parte, é sobre isso que os salmistas estão falando.        

É perceptível nos Salmos, no 96 que lemos, no 98 e no 40, que o cântico novo é um cântico de um tempo novo. Em verdade, um cântico novo só é possível dentro de um tempo novo. No Salmo 40 o salmista começa dizendo: "Coloquei toda minha esperança no Senhor; ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito de socorro". O que significa que o que havia antes era um tempo de sofrimento, tanto para ele, o salmista, quanto para o seu povo. No Salmo 98, até o verso 03, o salmista fala de coisa maravilhosas que foram feitas pelo Senhor (verso 01), um braço santo que conduz à vitória (verso 01), justiça recriada (verso 02), a fidelidade e o amor que o Senhor se lembrou que tinha com seu povo (verso 03). Antes daquilo o tempo certamente era diferente daquilo que o salmista está pintado. Só pode ser conduzido à vitória quem antes estava perdendo, se a justiça está sendo feita é porque antes o que estava acontecendo era injusto, se Deus se lembrou de seu amor e fidelidade é porque este amor e fidelidade não estavam sendo sentidos. No Salmo 96 o que é proclamado é a "salvação" (verso 02). Ele reina, ele julga, ele faz justiça (verso 10). O tempo agora é outro, é novo. Salmo 40: 02-03: "Ele me tirou de um poço de destruição, de um atoleiro de lama; pôs os meus pés sobre uma rocha e firmou-me num local seguro. Pôs um novo cântico na minha boca, um hino de louvor ao nosso Deus". Um tempo novo que exigia um cântico novo, não mais de lamento, mas de alegria.

Talvez por isso o salmista nos convide de uma forma tão entusiasmada. Se o tempo é novo cantem de forma nova. Cantem vocês, cantem todas as nações, cantem todos os povos, cantem todas as gentes, cantem até mesmo os céus, a terra, o mar, os campos, as árvores, as florestas (verso 11 e 12). Tudo deve cantar no entusiasmo do tempo que se faz novo e, principalmente, sem sofrimento. E isso não se explica, pois não pode ser entendido, apenas vivido. Em Apocalipse 14:03 há algo muito interessante quanto a isso: "Eles (os 144 mil, representação da totalidade daqueles e daqueles que estavam sofrendo o martírio no período da perseguição do final do primeiro e início do segundo século) cantavam um cântico novo diante do trono, dos quatro seres viventes e dos anciãos. Ninguém podia aprender o cântico, a não ser os cento e quarenta e quatro mil que haviam sido comprados da terra". Pois o "cântico novo" não se aprende, não é "ensinável", é apenas experimentável. Só eles podiam aprender o sentido de um "cântico novo" num tempo novo. Pois só eles haviam experimentado o antes para agora poder viver o depois.           

O novo está aí, falta pouco. O novo está aqui. O tempo é novo, se fez e se fará novo. Mas, antes de cantar é preciso compreender que o novo, antes de ser um tempo, antes de ser novidade, antes de se apresentar como começo, recomeço ou solução, o novo é um "sentimento". Começa por dentro antes de ser visível por fora. Mexe por dentro antes de mexer por fora. Faz novo uma porção de coisas dentro da gente antes de fazer novo uma porção de coisas fora da gente. Faz nova a vida antes da vida se tornar nova. Do contrário, tudo será igual apesar de ser diferente, tudo será o mesmo apesar de ser um outro tempo, o novo ano será tão velho quanto todos os outros que passaram, e o cântico, num outro ritmo, com outra melodia, com um outro tom, e talvez um letra nova, continuará sendo o mesmo.

Um cântico novo começa em um tempo novo, um tempo novo começa em um sentimento novo, um sentimento novo começa no Cristo que sempre faz nova todas as coisas. E me parece que o Salmo 96 e o 98 estão cheios disso, desse entusiasmado convite. "Cantem ao Senhor um novo cântico" não é apenas a troca de um cântico de lamento por um cântico de alegria, não é apenas a percepção de um tempo que se faz novo, antes difícil agora legal, é, antes de todo, um convite a um sentimento novo, um novo espírito, uma nova vida. Mas isso não se aprende de ensinar, se aprende de viver. Então vivam, se façam novos e cantem, hoje, em 2013 (caso o mundo não acabe mais uma vez) e em todos os outros anos do resto de nossa vida.  

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Partir, Multiplicar e Partilhar: Mateus 14:13-21

Há muitas possibilidades de leitura para o texto que acabamos de ler, leituras que vão da compreensão comunitária e social do comer junto até leituras que se fundam na compreensão da inesgotável, criativa e maravilhosa capacidade de Jesus de efetuar o miraculoso. E eu começo a minha fala caminhando por algumas dessas formas de leitura até poder chegar onde eu quero chegar dentro do texto lido, o que, em grande parte, não se distanciará (e esta é a intenção, não se distanciar) das outras possibilidades de leitura.       

Duas dessas leituras, inicialmente, não estão muito distantes. A primeira delas trabalha com a ideia de que tanto a primeira quanto a segunda multiplicação dos pães e dos peixes são um exemplo de uma grande ação social comunitária, onde o dividir possibilitou o saciar da fome de todos. O que era individual passou a ser comum e, de repente, todos estavam satisfeitos, conforme o texto, e ainda mais, sobrou. É a ideia de que o Reino de Deus começa na compreensão de que não haveria mais nada que fosse de alguém, mas que tudo de todos seria para todos. A multiplicação se deu a partir da divisão e a divisão possibilitou a multiplicação, todos comeram e sobrou. Teologias de cunho mais social ou integralistas, tanto no mundo católico quando no mundo protestante e evangélico, como a teologia da libertação, a teologia pública e o evangelho integral, compreendem muito bem isso. E, em muito, eu tenho que concordar: a multiplicação dos pães e dos peixes está carregada de uma ação social compreendida e executada dentro do Reino de Deus. Ação social comunitária, comunitária e de comunidade. E aí chegamos à segunda possível leitura deste texto: é uma grande ceia. Ele olhou para o céu (verso 19), deu graças e partiu o pão. Partiu para dividir, dividiu para multiplicar, e todos comeram, gente boa e gente ruim, gente que estava ali por motivos nobres e outros não, gente confusa, gente triste, gente doente, mas também gente feliz, gente para ouvir, gente legal, gente de todo tipo. Todos comeram: homens, mulheres e crianças. Ninguém ficou de fora. Foi certamente um momento de confraternização, coisa de comunidade mesmo. Pois a gente só começa a se entender como comunidade quando a gente passa a partir, a dividir e a multiplicar, principalmente a comida, símbolo daquilo que nos aproxima. Só chamamos para comer com a gente, em casa ou nas festas de família quem está próximo e se faz mais próximo e mais próximo cada vez mais. Comer juntos é um princípio comunitário, humano e cristão. Sempre que possível, comam juntos (só tomem cuidado com o sal e com a quantidade de comida). Quando a mesa se torna comum, a conversa, a comida e a vida ficam mais gostosas. Quando eu lei esse texto eu fico imaginando lá, o burburinho daquela gente toda, sentados no chão, as mulheres conversando muito, os homens com assuntos "importantes", as crianças correndo, gritando, chorando, rindo, brincando, e a comida sendo passada de um a um, de uma a uma, partida e distribuída.            
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Agora, entre a ação humana e a intervenção divina, o milagre da multiplicação dos pães e peixes, está a compreensão de que do pouco Deus pode fazer muito. E eu também não posso deixar de entender assim também. O que vocês tem? Verifiquem (Marcos 06:38). "Tudo o que temos aqui são cinco pães e dois peixes" (verso 17, Mateus 11). Perfeito! Isso será o suficiente, será mais do que o suficiente, vai sobrar. A leitura de que Jesus, como interpretação do texto que lemos, pode usar o pouco que é oferecido a ele, transformando esse pouco em muito e esse muito em muito mesmo, a ponto de sobrar, é algo muito rico. E a grande pergunta é: o que você teria a oferecer? O que eu tenho a oferecer? O que nós, enquanto comunidade cristã (uma nova comunidade) temos a oferecer? Ainda mais agora quando tudo se apresenta de uma forma muito provisória, é tudo muito precário, muito por fazer, muito de começo, muito sozinho, muito e muito quando o que há é apenas pouco. Mas do pouco o muito pode ser feito, dentro da mesma lógica anterior: partir, dividir e multiplicar. Só que antes está o oferecer: o que vocês tem? Temos isso e estamos disposto a oferecer. Tenho isso e estou disposto a oferecer. Em João 06:09 o exemplo se torna ainda mais bonito: "Aqui está um rapaz com cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas o que é isto para tanta gente?" Disso, o pouco do que é profundamente humano, Deus faz o muito a partir do milagre, e a coisa acontece.

No entanto, todas as vezes que leio ou penso nesse texto, mesmo compreendendo bem a lógica social que ele possui, seu princípio comunitário e de comunidade, sabendo que do pouco o muito pode ser feito a partir da ação de Deus, há algo que fica martelando a mente, incomodando, é o verso 16: "Dêem-lhes vocês algo para comer". Uma outra versão, mais antiga, a qual me lembro melhor, é mais perturbadora ainda: "Dai-lhes vós de comer". É perturbador porque coloca a gente diante da mes­­­­­­­ma situação dos discípulos: a visão de uma grande multidão que recebe de Jesus compaixão (verso 14): "Quando Jesus saiu do barco e viu tão grande multidão, teve compaixão deles e curou os seus doentes". Saber que a multidão está aí e que há doentes de todos os tipos, e que ele ainda recebe de Deus compaixão me perturba porque eu também sou discípulo, a igreja é a congregação dos discípulos, e nós estamos juntos diante da multidão. Somos também a multidão, mas, como igreja, somos e, mas e também, olhamos para ela pelo lado de fora, e olhamos de forma cristã. A multidão continua com fome. Parafraseando os textos: Jesus, mande eles embora. Já está tarde. Estamos no meio do deserto. É muita gente. Vai ficar caro, e mesmo que tivéssemos o dinheiro, fizéssemos uma "vaquinha", não valeria a pena, seria desperdício. É melhor eles irem embora. Não, ainda o verso 16: "Eles não precisam ir. Dêem-lhes vocês algo para comer".

Se é para ser cristão, tem que ser para ser comprometido com esse negócio. Se é para ser igreja tem que ser para ser, no mínino, consciente da multidão, vê-los é o mínino. Mas não só isso, consciente também da "missão". Perturbados, incomodados, inconformados e, principalmente, chamados: "Dêem-lhes vocês algo para comer", seja essa comida pão, seja essa comida peixe, seja essa comida esperança, alegria, fé, carinho, amor, respeito, vida e tudo o mais que faz parte da prática cristã, do estilo de vida cristão. Agora é com a gente: "dêem-lhes vocês algo para comer", vejam o que vocês têm, partam, multipliquem, dividam e comam juntos, de forma social e em comunidade. Pois isso é a missão da igreja. Isso é o Reino de Deus. Isso é milagre de Jesus.