quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sussurros Eclesiásticos: Mateus 10:24-31


A reflexão que segue, e que se segue há muito tempo, começa de uma leitura despreocupada no evangelho de Mateus, feita em casa, numa mesa, junto com um grupo de amigos e amigas todas as quintas. Foi reflexão em Barão Geraldo, na Igreja Batista de lá, no último dia 23, e na Igreja Batista em Holambra, no último dia 30. Agora posto o texto. Tinha caráter de estudo, sem muitas pretensões aplicativas. Mas, como toda leitura já é uma releitura, o texto se aplica, quase que de forma automática, pois todo texto lido aponta sempre para fora de si, e esse "si", agora, somos nós, seus leitores. Pois bem...!

O texto lido, oito versículos, fazem parte de um conjunto de palavras de Jesus, recomendações em verdade, ao grupo específico de seus discípulos, os doze, que serão enviados para um período de pregações, milagres, curas e libertação (verso 08), que deverá se dar pelas cidades, cidadelas e vilas do contexto da Galiléia (creio eu, baseado em Mateus 11:01), principalmente onde não haja muitos gentios ou samaritanos, já que a recomendação, no verso 05, é bem clara quanto a isso, nem gentios nem samaritanos, mas apenas aos judeus, verso 06, os da família. No verso 07 está a ordem para o discurso, é o Reino. O verso 08 é o que precisa ser feito. E aí os dois se complementam, 07 e 08, é o Reino de Deus em palavras e ações, é o Reino de Deus em sua completude, inteiro. Mas, sobre isso, poderemos conversar em outro momento, em uma outra oportunidade, por agora, o que interessa são nossos oito versos lidos, que começam no verso 24.  

E no que nos interessa, no nosso texto especificamente, as palavras de recomendação são básicas. Começam de uma forma básica, e não básica no sentido simplista, mas básica no sentido de ponto de partida: basta a vocês (os discípulos) serem iguais a mim (e é o Cristo que fala), vejamos os versos 24 e 25: "O discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e o servo, como o seu senhor". Eis aí o princípio da missão. Bastava ao discípulo, aos doze em verdade, dizerem e fazerem o que Jesus havia dito e feito até aquele momento. Palavras do Reino, ações do Reino. Isso é básico. É o ponto de partida do ser cristão, de ser discípulo do mestre Jesus. No final do verso 25, ironicamente, Jesus faz referência ao que aconteceu no verso 34 do capítulo 09, é preciso ler para entender: "Se o dono da casa foi chamado Belzebu (por ter libertado alguém pequeno e oprimido de alguém maior e opressor), quanto mais os membros da família". Basta a vocês dizerem o que eu digo e fazerem o que eu faço e todos entenderam o verso 07, que o Reino de Deus está próximo, que ele está se fazendo. Basta a vocês seguirem o meu caminho e as coisas certamente vão acontecer, tanto para o bem, pois muito gente vai ser libertada, quanto para o mal, pois os discípulos serão perseguidos (versos 28ss).

Mas não é para se temer (verso 26), pois tudo o que vinha sendo feito às escondidas, pelo menos essa foi a tentativa: por vezes Jesus pediu segredo aos que foram currados, e, talvez, a maior parte de seus ensinamentos ainda estive oculto, pois eles tinham sido dados nas rodas de conversas particulares entre ele e os seus; tudo isso, agora, deveria ser dado ao mundo, e dado de uma forma clara e convincente: "O que eu lhes digo na escuridão, falem à luz do dia; o que é sussurrado em seus ouvidos, proclamem dos telhados" (verso 27). Abro um adendo aqui: que frase bonita! Fecho meu adendo. Pois o Reino de Deus começa quando os discípulos do Senhor do Reino transformam o seu convívio com Jesus num convívio com pessoas humanas, com gente de lá de fora, gente pequena (pequeninos) e oprimida, que precisa "mais do que depressa" de libertação. Pois o Reino de Deus começa quando a conversa tida ao redor da fogueira, que iluminava e aquecia não apenas os olhos e o corpo, mas acima de tudo a mente e alma, quando essa conversa se faz presente na luz do cotidiano, na vida comum, lá em casa, lá no trabalho, lá na escola, onde o real da vida quase sempre pesa mais do que a esperança e o sonho juntos. A conversa noturna, mesmo que apenas aquela que é dominical, tem que se fazer presente no dia, na história real, na vida. Do contrário, não haverá Reino. É por isso que o que foi sussurrado ao pé do ouvido, tem que ser gritado do alto do telhado. As notícias do Reino são para todos. Elas transformam o opressor em culpado, e o oprimido em um ser liberto: "Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça, dêem também de graça" (verso 08). "Não tenham medo..." ele repete isso no verso 28, e volta a falar de perseguição, e logo depois as recomendações acabam.   

E aí! E aí a gente só pode imaginar, pensar que eles saíram, compreendendo que o caminho era aquele, foram de cidade em cidade, que em verdade, para nós hoje, seriam apenas pequenos aglomerados de casa aqui e ali. Fizeram o que Jesus falou, transformaram a ideia do Reino em um Reino que se fez verdadeiramente próximo, o que eram conversas noturnas ao redor da fogueira virou discurso pela manhã, o que eram apenas sussurros ao pé do ouvido se tornaram gritos no telhado. E aí, o tempo passou, e a gente tem que continuar imaginando, eles voltaram exultantes pelo que haviam feito, conforme Lucas 10, texto que me parece possuir um paralelo muito forte com o texto que lemos, verso 17: "os setenta e dois voltaram alegres e disseram: "Senhor, até os demônios se submetem a nós, em teu nome". Está feito, o Reino realmente está próximo, porque se fez próximo.

E o tempo passou novamente, e os discípulos voltaram para as conversas ao redor da fogueira, para as falas em sussurro, sussurros eclesiásticos, conjecturando sobre o sexo dos anjos ou sobre suas próprias idiossincrasias, pensando e falando sobre aquilo que pertence somente a si próprios. Criaram até um linguajar próprio, uma língua alienígena para poder continuar se comunicando com sussurros mesmo não estando ao redor da fogueira. É a língua que só os iniciados compreendem. E o tempo passou tanto que eles (os discípulos) ficaram confusos, mais confusos ainda, e passaram a achar que o discurso sobre o Reino era realmente o próprio Reino, um conceito para ser sistematizado, que o Reino próximo era aquele ali, da noite e da fogueira. Tornaram-se endógenos, e o Reino virou igreja.

No entanto, enquanto os discípulos de Jesus sussurram ao redor da fogueira, longe de suas preocupações eclesiásticas, de sua espiritualidade e pastoral ensimesmada, os lobos uivam, uivam, rosnam e latem, devorando os pequeninos. Oferecem libertação em troca de dinheiro, quando era para oferecer de graça o que foi dado de graça. São "simonistas" ao extremo, à luz do dia, à luz da televisão, na "cara" de todos. Sem nenhuma piedade eles devoram gente que, como em qualquer multidão, vive como se estivessem sem pastor. Vivem da miséria dos outros, e não se sentem miseráveis por isso. Não sentem nem vergonha. Agora os lobos têm outra cara também, e estão uivando pedindo votos. Alguns uivam imitando harpas angelicais ou (órgãos) pianos evangélicos. Uivam hinos de louvor. E há tantos outros lobos lá fora, tantos quanto você puder imaginar, talvez até mais do que você possa imaginar, tantos diferentes, que seus uivos, rosnados e latidos se misturam, mas todos com um único propósito: oprimir e devorar, quantos forem possível. Não há culpa, não há Reino, não há libertação. Não enquanto os discípulos de Jesus estiverem sussurram ao redor da fogueira. Porque o Reino não é e nunca foi para dentro, ele é para fora, ele é lá fora. É na luz do dia, é falar tão alto quantos os uivos, é falar contra os uivos. É enfrentar os lobos para proteger os pequeninos. E, "não tenham medo", disse Jesus. Pois o Reino é também enfrentamento (Mt 10:34). Todavia, é preciso ler novamente o verso 27, e pensar, e falar, e fazer o Reino. Como? Simplesmente sendo como ele foi. O servo como seu senhor, o discípulo como o seu mestre.                   

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