segunda-feira, 27 de maio de 2013

Em Naim: Lucas 07:11-17

Talvez por conta da profissão que me segue faz muitos anos, quase tudo na minha forma de imaginar ou pensar, até mesmo nas reflexões mais abstratas, eu tenha a mania de transformar tudo em imagem. Quase tudo vira "quadro" - em retrato - ou uma "cena", com seus cortes, diferentes tomadas e uma linguagem própria, teatralmente construída. É assim que eu leio as coisas.

E Lucas 07, a narrativa evangélica que acabamos de ler, possui, de certa forma, uma "imagem" extremamente forte. Jesus, conforme o texto, está se dirigindo a uma cidade chamada Naim, em verdade um vilarejo muito pobre alguns poucos quilômetros ao sul da cidade de Nazaré. Diz ainda o texto que Jesus, seus discípulos e uma multidão (talvez umas 40 ou 50 pessoas ao todo, talvez um pouco mais ou um pouco menos) de repente, no caminho, se depara com uma outra multidão, com um número talvez bem parecido com a multidão que segue a Jesus, mas, de forma diferente, ela vem em cortejo, e é um cortejo fúnebre, o filho único de uma viúva está sendo levado para o seu enterro, diz Lucas.

Esta foi a cena: o encontro das duas multidões seu deu na porta da cidade (verso 12). Era tudo muito rústico, muito pobre, muito cheio de poeira, muito cheio de gente simples, de gente comum, com jeito de sertão, gente sem muitas perspectivas de vida, sem muita vida, todo mundo, talvez todo mundo da cidade estava ali. E eles se encontram, as duas multidões.

Anos atrás eu trabalhei com uma moça que na época estudava cinema, ela era jornalista mas estudava para uma possível pós-graduação em cinema, e uma vez ela me disse que o que é quase padrão em qualquer filme é que primeiro se mostra o quadro todo, e ali este era o quadro todo: um monte de gente encontrando um outro monte de gente dentro do contexto que eu já descrevi. Depois, como prática, depois da cena aberta, se fecha nos detalhes: rostos, expressões, objetos importantes, imagens que vão começar a contar a estória, e ali a história era a de uma mulher viúva que levava seu único filho, em cortejo, para o fim final. Era um drama, uma tragédia. Uma mulher que ficaria sozinha, perdeu o marido, e agora perdia o filho. E ela não poderia fazer mais nada a não ser cumprir com o seu papel determinado: sofrer sua dor, chorar suas lágrimas e enterrar seu filho. Não havia mais esperança, não havia mais o que esperar.

Mas o que talvez a gente não saiba - ou não se atenha - é que a cena de Naim era uma cena mais do que comum nas periferias do mundo de Jesus, a desconstrução ou a descontinuidade da família por conta da morte. Não era apenas uma mera semelhança. Era a vida real. E hoje, talvez não mais por conta da morte, apenas, de algo tão extremo e pesado como na narrativa de Lucas, tão no limite, o que se assemelha é, também num talvez, a desconstrução e a descontinuidade da família, não mais tão dramática, mas mesmo assim ainda trágica. Na vida de muita gente lá fora e de muita gente aqui dentro os cortejos de descontinuidade da vida em família seguem seu passo, um passo largo que conduz ao mesmo fim final, da mesma forma, do mesmo jeito, com personagens diferentes, mas ainda assim dentro do mesmo roteiro. Por muitos e outros motivos, ainda hoje e da mesma forma, a vida e a vida em família perdem a sua continuidade.

No entanto, em Naim há uma outra personagem que aquela mulher não contava que iria aparecer. Ela seguiria, assim como muitas outras mulheres e mães, o caminho comum, o caminho normal a ser seguido naquela situação. Mas alguém aparece e mostra a ela lá e a nós aqui outras possibilidades. Possibilidades e implicações. Possibilidades para a vida em família e implicações para a comunidade de fé. E aqui eu começo a concluir minhas imagens nesse texto.

Há outras possibilidades para o caminho que aparentemente segue para o fim. Há esperança e sempre haverá esperança, mesmo quando ela não pareça mais existir. Diz Lucas que Jesus ao encontrar a multidão, viu a mulher e se compadeceu dela, e disse: "não chore" (verso 13). Enquanto o meu cortejo e o seu cortejo estiverem em processo e continuarem sendo feitos - apesar da tristeza, da dor e da ausência - em direção - de forma consciente ou não - a um encontro com Deus, com seu filho cheio de compaixão e compadecimento, eu lhes digo, sempre haverá uma outra possibilidade para a continuidade da vida e da vida em família: "Depois (versos 14 e 15), aproximou-se e tocou no caixão, e os que o carregavam pararam. Jesus disse: "Jovem, eu lhe digo, levante-se!" O jovem sentou-se e começou a conversar, e Jesus o entregou à sua mãe". Quando parece que acabou, não acabou ainda. Mesmo depois da porta da cidade, ainda há possibilidades, para quem quer que seja. Porque mesmo depois da porta da cidade (sabe?!) estaremos nós, numa multidão ou na outra, na que estava saindo ou na que estava entrado, não importa, estaremos lá como igreja, para, da mesma forma como o nosso Cristo, participar do cortejo humano em suas mais diferentes e difíceis formas. Estamos aqui para caminhar junto com quem caminha a vida comum em suas idiossincrasias e dilemas. Viver com que vive. Sofrer com quem sofre. Chorar com quem chora, como família. Na porta da cidade, enquanto igreja, com o mesmo sentimento: compaixão e compadecimento. É o nosso papel. Com a mesma palavra e a mesma ação: "não chore", entrar e tocar nos problemas, como Jesus fez tocando no caixão, mesmo que isso seja uma interpretação muito simbólica ou alegórica da coisa, e devolver a vida. Devolver filhos e filhas a pais e mães. Devolver pais e mães a filhos e filhas. Devolver maridos a esposas e esposas a maridos. Assim como em Naim. Deus os abençoe.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Volta para o teus: Marcos 05:01-20

O gadareno ou geraseno, isso conforme a tradução ou conforme a tradição do texto original, carrega em sua história - uma dramática história - uma gama de relações religiosas, de símbolos religiosos, sociais e culturais que saltam ao texto, e que, mesmo numa leitura rápida, já nos fazem começar a pensar e querer saber. Nesse sentido e nesse primeiro momento há muitas informações que podem enriquecer nossa compreensão do que aconteceu ali, e mais, enriquecer e, ao mesmo tempo, nos fazer, de uma forma melhor, compreender (em seus símbolos) os significados do que aconteceu ali.

O que é dito por Marcos é simples, Jesus e os discípulos, depois de atravessarem a experiência do mar que é acalmado nos versos 35-41 do capítulo 04, encontram, no que é chamado de região dos gerasenos ou gadarenos, um sujeito endemoninhado. E o que se percebe pela leitura do texto e por pesquisas posteriores é que ali é uma região de não-judeus (eles criam porcos, e judeus, religiosamente falando, consideram os porcos animais imundos). É gente que faz parte de um mundo e de uma forma de se relacionar com a divindade bem diferente daqueles e daquelas que fazem parte do mundo judeu de Jesus e de seus discípulos. De forma mais simples: são gente de uma outra religião. E isso é importante saber quando chegamos a Gadara (verso 01). Eles não são a gente, apesar deles estarem aqui junto com a gente e a gente aqui junto com eles.

Quando Jesus desembarca, diz Marcos, vem até ele um homem com um espírito imundo vindo dos sepulcros (verso 02), da morte, ou melhor, dos mortos. Não apenas dos mortos mortos, morridos mesmo, mas daqueles e daquelas que já haviam morrido para toda a sociedade, mas que, por uma questão de vida, insistiam em viver. Gente que não prestava mais, doentes, moribundos, excluídos, prostitutas etc, os párias da sociedade, gente miserável demais para poder viver junto com aqueles e aquelas que se julgavam comuns, normais. Aquele sujeito em comum, vem dali, ele vive ali (verso 03). Já foi preso, mas não adiantou. "Ninguém era forte para prendê-lo", diz o texto (verso 04). Ele vivia gritando, noite e dia, e estava, de pouco em pouco, se matando, se cortava com pedras, as mesmas pedras dos sepulcros e das colinas (verso 05). E ele tinha demônios, uma legião (o que é uma clara alusão a Roma e seus exércitos que dominavam a quem não tinham o direito de dominar). E mesmo para aquela época, acreditar que o degradante era fruto de uma possessão por espíritos maus fazia parte de uma crença menor, menos culta e menos inteligente, religiosa e filosoficamente falando. E para os que criam assim, ser possuído era algo que fazia da pessoa possuída alguém menor, digno de ser deixado nos sepulcros. De qualquer forma aquele homem seria sempre menos e cada vez menos.

Mesmo que isso pareça um exagero interpretativo meu, parece-me que até os porcos preferiram o suicídio do que viver de uma forma tão degradante quanto aquele homem que vai se encontrar com Jesus, quando ele desce do barco. Até ali ele é menos do que o menos, tanto para judeus quanto para não judeus, tanto para cultos quanto para os menos cultos, tanto para os sociamente bem colocados (os moradores da rica cidade de Gadara) quanto para os mal colocados socialmente (os que viviam ali, nos sepulcros também).       

No entanto, apesar dos símbolos de religião e religiosidade, e de política e sociedade que Marcos e Lucas nos mostram quando colocam o gadareno e Gadara, e a legião nos porcos, e os porcos no abismo que leva a morte, para mim, Jesus vê ali apenas um homem, uma pessoa humana que precisa ser reconstruída a partir de um lugar e de um estado de destruição completa. Foi só tudo isso o que ele viu. Jesus então o liberta.   

Daí toda a vida reconstruída quer, de alguma forma, se dedicar ao reconstrutor. Isso faz parte da compreensão em entusiasmo do serviço: "quando Jesus estava entrando no barco, o homem que estivera endemoninhado suplicava-lhe que o deixasse ir com ele [...]" (verso 18). É a ideia imediata de que é preciso se dedicar de forma completa e inteira ao serviço (de Jesus, da igreja, do Reino). Nós não somos gadarenos e nem fomos possessos por uma legião de demônios, não andávamos por sepulcros, mas em muito somos parecidos com aquele sujeito que se encontra com Jesus em uma das margens do mar da Galiléia. Sua história nos faz pensar agora em nossa própria história. E subir naquele barco e seguir a Jesus seria, para ele, uma nova possibilidade de vida longe dos rochedos e sepulcros, longe de todos e todas que o colocaram de lado, longe de seu passado humilhante, marcado pela violência e pela dor causado pela possessão que o havia aprisionado todo aquele tempo. Subir no barco e seguir com Jesus também era uma forma de deixar para trás toda a dor que ele próprio causou, era uma forma de deixar as culpas no passado, de deixar o passado e todas as pessoas que lá estão no passado. Talvez fosse uma forma de fugir, ou talvez uma forma de substituir.  

Porém, diferente de outros momentos, onde Jesus diz: "vem e me segue", deixa mesmo tudo para trás, quase como se dissesse: "vamos lá construir o Reino de Deus juntos", aqui, nesse texto, a percepção é outra. Marcos diz que "Jesus não o permitiu" (verso 19), e mais, falou algo para ele que, talvez, para nós, hoje, faça um maior sentido: volta para a tua casa, para a tua família e também reconstrua o que foi destruído. Pois talvez (e esse meu talvez está carregado de muitas certezas) seja lá, dentro de casa, nas relações de família, entre você e os teus, que esteja o verdadeiro e mais precioso serviço que deva ser prestado ao Reino de Deus. O maior campo missionário do mundo é a tua casa, o lugar mais sagrado do mundo, lugar e espaço de verdadeira espiritualidade é o teu lar, as pessoas com as quais você deveria "gastar" mais tempo, mais conversas, mais brincadeiras, mais risos, mais abraços e tudo mais é com a tua família.     

Sai daqui. Sai do meu barco (mais uma vez eu exagero na minha interpretação). Volta para casa. Volta para os teus. Senta com eles. Conta a eles o que Deus fez por você, quanto ele fez e quanto ele foi misericordioso, o como ele foi misericordioso (verso 19). Sai do meu barco e volta para a sua casa, para a sua família. Pois é lá, juntos, que vocês vão falar de Deus, pensar em Deus, encontrar Deus e viver com Ele. 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Compaixão e Cuidado: João 19:25-27

Hoje, como proposto pelo tema do mês, como tema para esta noite, pensar família deixou de ser apenas uma necessidade prática de reflexão, ou, melhor dizendo, uma necessidade de reflexão prática sobre a família, do como ser família, o ser pai, o ser mãe, ser o responsável, o marido ou a mulher, ser filho ou filha, enteado ou enteada, o que ser e como ser, o lugar, o papel etc; e passou a ser uma forma de desespero ou lamento na despedida, pois, o que de fato se está falando, e esta é uma preocupação de todos e eu não estou exagerando, é sobre o fim da família. Enquanto nós estamos discutindo aqui (na igreja), ainda, o papel de cada membro da família: o pai é (ou deve ser) isso, a mãe é aquilo e os filhos são deste ou daquele jeito, lá fora, no mundo, já se está falando sobre a falência e a inexistência da família e sobre as crises que isso tem causado na sociedade como um todo. Pois com a falência da menor e da primeira das instituições, a instituição família, todas as outras ruíram juntas: o Estado, a escola, a igreja e todas as outras grandes instituições em sociedade que você possa pensar, até mesmo a ideia de globalidade, de planeta. Isto é o fim da instituição.

Talvez por isso se esteja discutindo tanto os “papéis”, como se a vida fosse como em palco de teatro ou na tela do cinema, é só acertar os papéis, as falas e as interpretações e pronto, estará tudo resolvido. Talvez também por isso se esteja falando tanto em “identidade”, a identidade da igreja, no nosso caso, a “identidade batista”, perdemos a identidade, aquilo que nos identifica, como se isso fosse uma crise só batista, ou só da igreja. Hoje, ninguém mais sabe o que é, nem mais ao que pertence, o de onde, e digo isso a partir das individualidades, pensando de pessoa em pessoa; como então não haveria crise de identidade institucional: Estado, igreja, família etc, se as pessoas não sabem mais o que elas são individualmente ou se são. Tempos atrás uma jovem no ônibus que eu também estava dizia: segunda eu vou em tal igreja, hoje eu vou em tal outra, amanhã eu vou na minha, na quinta eu vou na da minha amiga, na sexta eu vou naquela, no sábado (e isso eu já estou inventando, mas pode bem ser verdade) vou num show, no domingo volto para minha. Mas qual é a dela? Quem é ela? Qual é a sua identidade? Ela é de todas e, ao mesmo tempo, de nenhuma. Mas e na família?

Quando eu olho para a família eu não vejo uma crise de “papéis”, quem é o que e quem faz o que, o pai sustenta (é o cabeça) e a mãe educa (é a submissa), os pais mandam e os filhos obedecem. Os papéis mudam, a mãe pode trabalhar e ganhar mais do que o marido, sem nenhum problema; o marido pode ajudar nos afazeres domésticos e na educação dos filhos, também sem problema; os filhos podem participar nas decisões da casa e não só obedecer, pois dar a opinião também é sinal de respeito e obediência. Não é isso o que está destruindo a família.

De outra forma os “papéis” também mudam e mudaram no Estado, finalmente descobrimos que nem tudo é culpa do governo, nós também somos culpados de muita coisa que está ao nosso lado. Quando eu ouço alguém dizendo “ninguém faz nada...” eu já entendo que quem está dizendo já se incluiu nesse ninguém. A escola também mudou ou precisa mudar, da educação informativa para uma educação formativa. A igreja, querendo ou não, também mudou, para mal na maioria dos casos, mas também para o bem. Não foi isso o que destruiu ou está destruindo as instituições. Os papéis mudaram, as instituições continuam aí, então onde está a crise? Principalmente a crise da família, onde ela está? O que aconteceu? Como disse semanas atrás, o que aconteceu foi que alguns valores mudaram ou se perderam de forma definitiva. E na família, de forma principal, o que se perdeu foi o princípio do cuidado e da compaixão. Não são os papéis, mas o cuidado. A família entrou em crise quando passamos a pensar quase que exclusivamente em nossa individualidade e nos esquecemos do grupo, dos outros, daqueles e daquelas que dormem na mesma casa que eu. Foi quando eu deixei de enxergar os outros e passei a ver somente a mim mesmo, aí voltamos ao texto que lemos.
Em João 19:11, o princípio que a família contemporânea perdeu, já estava nos pés da cruz junto com Jesus. A Maria mãe, a Maria tia e a Maria amiga estavam lá, cuidavam, cada Maria, do filho, do sobrinho e do amigo da forma como era possível cuidar naquele momento, com a presença. Ou seja: Jesus estava sendo cuidado por elas a partir da presença delas no seu momento mais difícil, a cruz. Estar presente nos momentos de dificuldade é um princípio de cuidado. Elas estavam lá, olhando para ele antes de olharem para elas.

Depois, o próprio Jesus ensina a eles e a nós esse mesmo princípio, o princípio do cuidado: É o filho mais velho dando à mãe (ou devolvendo a ela, que já não tem mais marido, José provavelmente já morreu) o cuidado que ele não vai mais poder dar: “eis aí a sua mãe”, olhe para ela, cuide dela. É também o mestre cuidado do seu discípulo mais amado: “mãe, eis aí o teu filho”, olhe para ele, cuide dele. Isto é família: o cuidado um pelo outro, o olhar um para o outro, foi isso o que se perdeu. Quando foi que nós nos tornamos suficientemente individualistas, egoísta e cegos para os outros, a ponto de perdermos o princípio do cuidado, eu não sei. Eu só sei que se o filho ou a filha olhasse um pouco mais - coisa pouca - para os pais, para o pai e para a mãe, as coisas seriam muito diferentes dentro de casa. Eu só sei que se o marido olhasse mais para a esposa e a esposa mais para o marido, tendo o princípio do cuidado como valor no relacionamento, as coisas seriam bem diferentes dentro de casa. Eu só sei que se os pais olhassem para os filhos um pouco mais, não só para recriminar, mandar ou encaminhar, as coisas também seriam diferentes. Eu só sei que se a partir do cuidado, esse princípio que se perdeu, olhássemos mais para quem dorme na mesma casa que a gente dorme, para quem tem ou não o mesmo sangue da gente e é família nossa, as coisas seriam bem diferentes, e, certamente, não estaríamos falando de “papéis” nem de crises, mas de alegria e harmonia: “eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”. “Daquela hora em diante, o discípulo a recebeu em sua família”.