Eu gostaria de, hoje, ler apenas um verso com vocês,
Lucas 24:32: "Não estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava
no caminho e nos expunha as escrituras?" Apenas esse verso. É com ele que
eu encerro um caminho.
Quando olhamos para os evangelhos, especificamente
para os seus finais, logo depois da morte e ressurreição de Jesus, encontramos
uma quantidade de versículos muito pequena que relatam os acontecimentos que se
deram entre a morte e ressurreição de Jesus e sua ascensão. Mateus, por
exemplo, reserva 20 versículos para isso, e termina seu relato com aquilo que
passou a ser chamado pelas tradições missionárias de "A Grande
Comissão", um tipo de últimas recomendações. Daí nós encontramos no livro
de Atos dos Apóstolos, capítulo primeiro, mais 11 versos para descrever a
ascensão, que é quando Jesus diz suas últimas palavras de forma pessoal aos
seus discípulos, e daí volta para o Pai. E nesse mesmo capítulo de Atos, Lucas
diz que Jesus ficou com eles por quarenta dias (verso 03), falando-lhes do
Reino de Deus. Paulo, em sua primeira carta aos coríntios, 15:05ss, diz que
depois da ressurreição, Jesus apareceu aos discípulos, aqui e ali, e, em uma
vez, apareceu a mais de quinhentas pessoas, todas juntas, o que seria um número
razoável de testemunhas ainda vivas quando Paulo escreveu isso.
Mas é João e Lucas que reservam encontros marcantes
com o Cristo Jesus ressurreto. Além de Tomé, do diálogo de Jesus com ele, João,
no capítulo 21, o último de seu livro, narra um dia de pescaria memorável,
certamente uma das narrativas mais bonitas dos evangelhos, tem peixe assado,
pescaria de barco, fogueira à beira mar, e Pedro. Já Lucas escolhe dois
discípulos desconhecidos (um deles se chama Cleopas, verso 18, mas para a
história bíblica são anônimos) que estão caminhando de Jerusalém para Emaús, onze
quilômetros (segundo o verso 13 de Lucas 24), duas hora e meia - mais ou menos
- de caminhada, um tempo que estava sendo gasto em um diálogo sobre os últimos
acontecimentos (verso 14), até ali a morte de Jesus.
Em princípio, para mim, João e Lucas estão
preocupados, dentro desse espaço de tempo: a morte e ressurreição e a ascensão
de Jesus, de tratar de questões que estavam para além da ideia de testemunhos
da ressurreição. João é o perdão dado a Pedro. Lucas é aonde eu quero chegar.
Os dois caminhantes que vão de Jerusalém para Emaús
exemplificam em sua caminhada e diálogo o sentimento de todos aqueles e aquelas
que acabaram de perder os "sentidos" da própria caminhada. Com a
morte de Jesus, há um certo ar de derrota na vida de cada um deles. Antes havia
um novo propósito ou proposta, havia uma nova possibilidade, havia um novo
jeito, uma nova apreensão, sonhos e esperanças, uma nova vida, e, de repente,
tudo aquilo havia acabado. Para nós é fácil olhar de fora e principalmente
depois, e fazer uma leitura simplista e errada dos sentimentos deles: tristeza
desnecessária, medo excessivo, não entenderam nada, leram errado, faltaram com
a fé, desistiram de tudo muito rápido. Ver de fora é assim. Já eles viveram as
coisas como elas foram, de dentro e por dentro. Por isso estavam caminhando
(fazendo seu caminho) como tinham que caminhar, eles dois. E entre esse tempo
de morte e esse tempo de ressurreição, e depois de ascensão, eles, discípulos
anônimos, caminhantes, exemplificaram um sentimento coletivo, primeiro dos
apóstolos (os mais próximos e esperançosos), depois dos discípulos (que seguiam
ao lado), e por fim da primeira comunidade de fé (que ansiava pelo Reino de
Deus e uma nova vida: "e nós esperávamos que era ele que ia trazer a
redenção a Israel" (verso 21)). E esse não era um exemplo e um momento
bom. E tudo isso precisava ser tratado, e foi. Jesus aparece e diz, verso 17:
"Sobre o que vocês estão discutindo enquanto caminham? Eles pararam, com
rostos entristecidos".
Sabe quando está tudo desmoronando ou já desmoronou e
alguém chega para você e diz: "o que aconteceu?" Sabe?! Aí tem que
parar, a tristeza volta e se expressa no olhar, é vista no rosto. Pois há
momentos na história da gente, de qualquer um de nós, de cada um de nós, em
jornadas ou caminhadas carregas de desalentos, decepções, desânimos etc, que a
última coisa que desejamos é que o que passou se repita - ou mesmo e mais ainda
- que seja lembrado. É melhor deixar o passado no passado. É melhor tentar seguir
por outro caminho, em um outra direção. É melhor esquecer para poder continuar
sendo, indo. É exatamente isso que aqueles dois caminhantes da estrada de
Jerusalém a Emaús, caminhantes da vida, estão tentando fazer. É isso o que a
gente tenta fazer quando o caminho que se apresenta se dá no desconforto das
angústias e tristezas da vida: sonhos interrompidos, esperanças mal logradas,
decepções. Tentamos ir para frente mesmo que esse para frente seja um caminho
para trás, de retorno, de fuga ou coisa parecida, pois caminhar, não importando
a direção, também é um exercício para a mente, pois o que para trás fica, vai ficando
para trás mesmo. Todavia, a pergunta de Jesus no verso 17 suscita uma resposta,
e toda a história está lá e sempre estará, pois é difícil fugir do passado, nós
somos memória, a nossa memória.
Então, diz Lucas, no verso 18, que o discípulo
chamado Cleopas respondeu a Jesus: "você é o único visitante em Jerusalém
que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?" Gosto de outra
tradução que diz "estrangeiro". Hoje seria algo do tipo: "de que
planeta você veio?" Mas Jesus quer a memória: "que coisas?" Que
coisas aconteceram que os conduziram até àquele momento? Até àquele caminho?
Até ali? O que aconteceu? Falem para mim o porquê de vocês estarem aqui. Eles
então desabafaram a vida.
Deus parece, às vezes, desejar a nossa história,
assim como nós a vemos. Ele quer ouvir de nós a nossa própria memória, a nossa
própria percepção do que nos aconteceu e do que aconteceu ao nosso redor que
nos conduziu ao caminho que agora trilhamos enquanto pessoas, enquanto família,
enquanto comunidade de fé. Deus quer saber de nós, de você individualmente, de
mim individualmente, a razão de nosso caminho. "Que coisas?" não é um
pergunta que busca pelos fatos, mas pelo como vemos os fatos. Eles falam, Jesus
fala. Daí chegamos ao verso 32.
Por mais difícil que seja o caminho, caminho causado
por história pesadas, embrulhadas, misturadas e tristes, o que de fato importa
não é caminho, mesmo que ele seja um caminho de retorno, de alguém que lutou e
perdeu a luta, de alguém sonhou e assistiu o fim do seu sonho, de quem estava
cheio de esperanças e caiu, mesmo que ele seja um caminho de fuga, de
distanciamento, mesmo que seja um caminho feito cabisbaixo, se houver ainda,
mesmo que pequena, uma chama no coração do caminhante, ainda há e sempre haverá
esperança. Eu consigo ver a expressão dos olhos daqueles dois discípulos depois
de Jesus partir o pão e eles o reconhecerem (versos 30 e 31 de Lucas 24). Eu
consigo sentir a beleza e a profundidade da frase-pergunta deles: "não nos
ardia (queimava) o coração quando ele nos falava no caminho?" É a alegria
de alguém que reencontra em sua história, em sua memória, nos fatos que estão e
sempre estarão lá, eles não mudaram, eles não se desfizeram, eles são os mesmos
e continuaram sendo, "que reencontra" uma outra forma de ver, de ver
o passado, de ver o caminho, de ver a vida, de ver o que há pela frente.
Diz o verso 33 que, imediatamente, essa é a expressão
de Lucas, eles voltaram. Voltaram pelo mesmo caminho, mas em outra direção,
voltaram os mesmos dois, mas, certamente, com outra percepção de tudo e do
todo, com um outro ânimo e um outro espírito. Pois, não é o caminho que faz o
caminhante, mas sim o caminhante que faz o caminho, e o faz a partir de suas
histórias, de suas memórias, de seus sentidos e sentimentos (esperanças e
sonhos), de seus olhos, os nossos olhos, novos e melhores olhos.