segunda-feira, 15 de julho de 2013

Caminhos e Caminhantes: Lucas 24:32

Eu gostaria de, hoje, ler apenas um verso com vocês, Lucas 24:32: "Não estava queimando o nosso coração, enquanto ele nos falava no caminho e nos expunha as escrituras?" Apenas esse verso. É com ele que eu encerro um caminho.

Quando olhamos para os evangelhos, especificamente para os seus finais, logo depois da morte e ressurreição de Jesus, encontramos uma quantidade de versículos muito pequena que relatam os acontecimentos que se deram entre a morte e ressurreição de Jesus e sua ascensão. Mateus, por exemplo, reserva 20 versículos para isso, e termina seu relato com aquilo que passou a ser chamado pelas tradições missionárias de "A Grande Comissão", um tipo de últimas recomendações. Daí nós encontramos no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo primeiro, mais 11 versos para descrever a ascensão, que é quando Jesus diz suas últimas palavras de forma pessoal aos seus discípulos, e daí volta para o Pai. E nesse mesmo capítulo de Atos, Lucas diz que Jesus ficou com eles por quarenta dias (verso 03), falando-lhes do Reino de Deus. Paulo, em sua primeira carta aos coríntios, 15:05ss, diz que depois da ressurreição, Jesus apareceu aos discípulos, aqui e ali, e, em uma vez, apareceu a mais de quinhentas pessoas, todas juntas, o que seria um número razoável de testemunhas ainda vivas quando Paulo escreveu isso.

Mas é João e Lucas que reservam encontros marcantes com o Cristo Jesus ressurreto. Além de Tomé, do diálogo de Jesus com ele, João, no capítulo 21, o último de seu livro, narra um dia de pescaria memorável, certamente uma das narrativas mais bonitas dos evangelhos, tem peixe assado, pescaria de barco, fogueira à beira mar, e Pedro. Já Lucas escolhe dois discípulos desconhecidos (um deles se chama Cleopas, verso 18, mas para a história bíblica são anônimos) que estão caminhando de Jerusalém para Emaús, onze quilômetros (segundo o verso 13 de Lucas 24), duas hora e meia - mais ou menos - de caminhada, um tempo que estava sendo gasto em um diálogo sobre os últimos acontecimentos (verso 14), até ali a morte de Jesus.

Em princípio, para mim, João e Lucas estão preocupados, dentro desse espaço de tempo: a morte e ressurreição e a ascensão de Jesus, de tratar de questões que estavam para além da ideia de testemunhos da ressurreição. João é o perdão dado a Pedro. Lucas é aonde eu quero chegar.

Os dois caminhantes que vão de Jerusalém para Emaús exemplificam em sua caminhada e diálogo o sentimento de todos aqueles e aquelas que acabaram de perder os "sentidos" da própria caminhada. Com a morte de Jesus, há um certo ar de derrota na vida de cada um deles. Antes havia um novo propósito ou proposta, havia uma nova possibilidade, havia um novo jeito, uma nova apreensão, sonhos e esperanças, uma nova vida, e, de repente, tudo aquilo havia acabado. Para nós é fácil olhar de fora e principalmente depois, e fazer uma leitura simplista e errada dos sentimentos deles: tristeza desnecessária, medo excessivo, não entenderam nada, leram errado, faltaram com a fé, desistiram de tudo muito rápido. Ver de fora é assim. Já eles viveram as coisas como elas foram, de dentro e por dentro. Por isso estavam caminhando (fazendo seu caminho) como tinham que caminhar, eles dois. E entre esse tempo de morte e esse tempo de ressurreição, e depois de ascensão, eles, discípulos anônimos, caminhantes, exemplificaram um sentimento coletivo, primeiro dos apóstolos (os mais próximos e esperançosos), depois dos discípulos (que seguiam ao lado), e por fim da primeira comunidade de fé (que ansiava pelo Reino de Deus e uma nova vida: "e nós esperávamos que era ele que ia trazer a redenção a Israel" (verso 21)). E esse não era um exemplo e um momento bom. E tudo isso precisava ser tratado, e foi. Jesus aparece e diz, verso 17: "Sobre o que vocês estão discutindo enquanto caminham? Eles pararam, com rostos entristecidos".         

Sabe quando está tudo desmoronando ou já desmoronou e alguém chega para você e diz: "o que aconteceu?" Sabe?! Aí tem que parar, a tristeza volta e se expressa no olhar, é vista no rosto. Pois há momentos na história da gente, de qualquer um de nós, de cada um de nós, em jornadas ou caminhadas carregas de desalentos, decepções, desânimos etc, que a última coisa que desejamos é que o que passou se repita - ou mesmo e mais ainda - que seja lembrado. É melhor deixar o passado no passado. É melhor tentar seguir por outro caminho, em um outra direção. É melhor esquecer para poder continuar sendo, indo. É exatamente isso que aqueles dois caminhantes da estrada de Jerusalém a Emaús, caminhantes da vida, estão tentando fazer. É isso o que a gente tenta fazer quando o caminho que se apresenta se dá no desconforto das angústias e tristezas da vida: sonhos interrompidos, esperanças mal logradas, decepções. Tentamos ir para frente mesmo que esse para frente seja um caminho para trás, de retorno, de fuga ou coisa parecida, pois caminhar, não importando a direção, também é um exercício para a mente, pois o que para trás fica, vai ficando para trás mesmo. Todavia, a pergunta de Jesus no verso 17 suscita uma resposta, e toda a história está lá e sempre estará, pois é difícil fugir do passado, nós somos memória, a nossa memória.    

Então, diz Lucas, no verso 18, que o discípulo chamado Cleopas respondeu a Jesus: "você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?" Gosto de outra tradução que diz "estrangeiro". Hoje seria algo do tipo: "de que planeta você veio?" Mas Jesus quer a memória: "que coisas?" Que coisas aconteceram que os conduziram até àquele momento? Até àquele caminho? Até ali? O que aconteceu? Falem para mim o porquê de vocês estarem aqui. Eles então desabafaram a vida.

Deus parece, às vezes, desejar a nossa história, assim como nós a vemos. Ele quer ouvir de nós a nossa própria memória, a nossa própria percepção do que nos aconteceu e do que aconteceu ao nosso redor que nos conduziu ao caminho que agora trilhamos enquanto pessoas, enquanto família, enquanto comunidade de fé. Deus quer saber de nós, de você individualmente, de mim individualmente, a razão de nosso caminho. "Que coisas?" não é um pergunta que busca pelos fatos, mas pelo como vemos os fatos. Eles falam, Jesus fala. Daí chegamos ao verso 32.

Por mais difícil que seja o caminho, caminho causado por história pesadas, embrulhadas, misturadas e tristes, o que de fato importa não é caminho, mesmo que ele seja um caminho de retorno, de alguém que lutou e perdeu a luta, de alguém sonhou e assistiu o fim do seu sonho, de quem estava cheio de esperanças e caiu, mesmo que ele seja um caminho de fuga, de distanciamento, mesmo que seja um caminho feito cabisbaixo, se houver ainda, mesmo que pequena, uma chama no coração do caminhante, ainda há e sempre haverá esperança. Eu consigo ver a expressão dos olhos daqueles dois discípulos depois de Jesus partir o pão e eles o reconhecerem (versos 30 e 31 de Lucas 24). Eu consigo sentir a beleza e a profundidade da frase-pergunta deles: "não nos ardia (queimava) o coração quando ele nos falava no caminho?" É a alegria de alguém que reencontra em sua história, em sua memória, nos fatos que estão e sempre estarão lá, eles não mudaram, eles não se desfizeram, eles são os mesmos e continuaram sendo, "que reencontra" uma outra forma de ver, de ver o passado, de ver o caminho, de ver a vida, de ver o que há pela frente.

Diz o verso 33 que, imediatamente, essa é a expressão de Lucas, eles voltaram. Voltaram pelo mesmo caminho, mas em outra direção, voltaram os mesmos dois, mas, certamente, com outra percepção de tudo e do todo, com um outro ânimo e um outro espírito. Pois, não é o caminho que faz o caminhante, mas sim o caminhante que faz o caminho, e o faz a partir de suas histórias, de suas memórias, de seus sentidos e sentimentos (esperanças e sonhos), de seus olhos, os nossos olhos, novos e melhores olhos. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Em Naim: Lucas 07:11-17

Talvez por conta da profissão que me segue faz muitos anos, quase tudo na minha forma de imaginar ou pensar, até mesmo nas reflexões mais abstratas, eu tenha a mania de transformar tudo em imagem. Quase tudo vira "quadro" - em retrato - ou uma "cena", com seus cortes, diferentes tomadas e uma linguagem própria, teatralmente construída. É assim que eu leio as coisas.

E Lucas 07, a narrativa evangélica que acabamos de ler, possui, de certa forma, uma "imagem" extremamente forte. Jesus, conforme o texto, está se dirigindo a uma cidade chamada Naim, em verdade um vilarejo muito pobre alguns poucos quilômetros ao sul da cidade de Nazaré. Diz ainda o texto que Jesus, seus discípulos e uma multidão (talvez umas 40 ou 50 pessoas ao todo, talvez um pouco mais ou um pouco menos) de repente, no caminho, se depara com uma outra multidão, com um número talvez bem parecido com a multidão que segue a Jesus, mas, de forma diferente, ela vem em cortejo, e é um cortejo fúnebre, o filho único de uma viúva está sendo levado para o seu enterro, diz Lucas.

Esta foi a cena: o encontro das duas multidões seu deu na porta da cidade (verso 12). Era tudo muito rústico, muito pobre, muito cheio de poeira, muito cheio de gente simples, de gente comum, com jeito de sertão, gente sem muitas perspectivas de vida, sem muita vida, todo mundo, talvez todo mundo da cidade estava ali. E eles se encontram, as duas multidões.

Anos atrás eu trabalhei com uma moça que na época estudava cinema, ela era jornalista mas estudava para uma possível pós-graduação em cinema, e uma vez ela me disse que o que é quase padrão em qualquer filme é que primeiro se mostra o quadro todo, e ali este era o quadro todo: um monte de gente encontrando um outro monte de gente dentro do contexto que eu já descrevi. Depois, como prática, depois da cena aberta, se fecha nos detalhes: rostos, expressões, objetos importantes, imagens que vão começar a contar a estória, e ali a história era a de uma mulher viúva que levava seu único filho, em cortejo, para o fim final. Era um drama, uma tragédia. Uma mulher que ficaria sozinha, perdeu o marido, e agora perdia o filho. E ela não poderia fazer mais nada a não ser cumprir com o seu papel determinado: sofrer sua dor, chorar suas lágrimas e enterrar seu filho. Não havia mais esperança, não havia mais o que esperar.

Mas o que talvez a gente não saiba - ou não se atenha - é que a cena de Naim era uma cena mais do que comum nas periferias do mundo de Jesus, a desconstrução ou a descontinuidade da família por conta da morte. Não era apenas uma mera semelhança. Era a vida real. E hoje, talvez não mais por conta da morte, apenas, de algo tão extremo e pesado como na narrativa de Lucas, tão no limite, o que se assemelha é, também num talvez, a desconstrução e a descontinuidade da família, não mais tão dramática, mas mesmo assim ainda trágica. Na vida de muita gente lá fora e de muita gente aqui dentro os cortejos de descontinuidade da vida em família seguem seu passo, um passo largo que conduz ao mesmo fim final, da mesma forma, do mesmo jeito, com personagens diferentes, mas ainda assim dentro do mesmo roteiro. Por muitos e outros motivos, ainda hoje e da mesma forma, a vida e a vida em família perdem a sua continuidade.

No entanto, em Naim há uma outra personagem que aquela mulher não contava que iria aparecer. Ela seguiria, assim como muitas outras mulheres e mães, o caminho comum, o caminho normal a ser seguido naquela situação. Mas alguém aparece e mostra a ela lá e a nós aqui outras possibilidades. Possibilidades e implicações. Possibilidades para a vida em família e implicações para a comunidade de fé. E aqui eu começo a concluir minhas imagens nesse texto.

Há outras possibilidades para o caminho que aparentemente segue para o fim. Há esperança e sempre haverá esperança, mesmo quando ela não pareça mais existir. Diz Lucas que Jesus ao encontrar a multidão, viu a mulher e se compadeceu dela, e disse: "não chore" (verso 13). Enquanto o meu cortejo e o seu cortejo estiverem em processo e continuarem sendo feitos - apesar da tristeza, da dor e da ausência - em direção - de forma consciente ou não - a um encontro com Deus, com seu filho cheio de compaixão e compadecimento, eu lhes digo, sempre haverá uma outra possibilidade para a continuidade da vida e da vida em família: "Depois (versos 14 e 15), aproximou-se e tocou no caixão, e os que o carregavam pararam. Jesus disse: "Jovem, eu lhe digo, levante-se!" O jovem sentou-se e começou a conversar, e Jesus o entregou à sua mãe". Quando parece que acabou, não acabou ainda. Mesmo depois da porta da cidade, ainda há possibilidades, para quem quer que seja. Porque mesmo depois da porta da cidade (sabe?!) estaremos nós, numa multidão ou na outra, na que estava saindo ou na que estava entrado, não importa, estaremos lá como igreja, para, da mesma forma como o nosso Cristo, participar do cortejo humano em suas mais diferentes e difíceis formas. Estamos aqui para caminhar junto com quem caminha a vida comum em suas idiossincrasias e dilemas. Viver com que vive. Sofrer com quem sofre. Chorar com quem chora, como família. Na porta da cidade, enquanto igreja, com o mesmo sentimento: compaixão e compadecimento. É o nosso papel. Com a mesma palavra e a mesma ação: "não chore", entrar e tocar nos problemas, como Jesus fez tocando no caixão, mesmo que isso seja uma interpretação muito simbólica ou alegórica da coisa, e devolver a vida. Devolver filhos e filhas a pais e mães. Devolver pais e mães a filhos e filhas. Devolver maridos a esposas e esposas a maridos. Assim como em Naim. Deus os abençoe.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Volta para o teus: Marcos 05:01-20

O gadareno ou geraseno, isso conforme a tradução ou conforme a tradição do texto original, carrega em sua história - uma dramática história - uma gama de relações religiosas, de símbolos religiosos, sociais e culturais que saltam ao texto, e que, mesmo numa leitura rápida, já nos fazem começar a pensar e querer saber. Nesse sentido e nesse primeiro momento há muitas informações que podem enriquecer nossa compreensão do que aconteceu ali, e mais, enriquecer e, ao mesmo tempo, nos fazer, de uma forma melhor, compreender (em seus símbolos) os significados do que aconteceu ali.

O que é dito por Marcos é simples, Jesus e os discípulos, depois de atravessarem a experiência do mar que é acalmado nos versos 35-41 do capítulo 04, encontram, no que é chamado de região dos gerasenos ou gadarenos, um sujeito endemoninhado. E o que se percebe pela leitura do texto e por pesquisas posteriores é que ali é uma região de não-judeus (eles criam porcos, e judeus, religiosamente falando, consideram os porcos animais imundos). É gente que faz parte de um mundo e de uma forma de se relacionar com a divindade bem diferente daqueles e daquelas que fazem parte do mundo judeu de Jesus e de seus discípulos. De forma mais simples: são gente de uma outra religião. E isso é importante saber quando chegamos a Gadara (verso 01). Eles não são a gente, apesar deles estarem aqui junto com a gente e a gente aqui junto com eles.

Quando Jesus desembarca, diz Marcos, vem até ele um homem com um espírito imundo vindo dos sepulcros (verso 02), da morte, ou melhor, dos mortos. Não apenas dos mortos mortos, morridos mesmo, mas daqueles e daquelas que já haviam morrido para toda a sociedade, mas que, por uma questão de vida, insistiam em viver. Gente que não prestava mais, doentes, moribundos, excluídos, prostitutas etc, os párias da sociedade, gente miserável demais para poder viver junto com aqueles e aquelas que se julgavam comuns, normais. Aquele sujeito em comum, vem dali, ele vive ali (verso 03). Já foi preso, mas não adiantou. "Ninguém era forte para prendê-lo", diz o texto (verso 04). Ele vivia gritando, noite e dia, e estava, de pouco em pouco, se matando, se cortava com pedras, as mesmas pedras dos sepulcros e das colinas (verso 05). E ele tinha demônios, uma legião (o que é uma clara alusão a Roma e seus exércitos que dominavam a quem não tinham o direito de dominar). E mesmo para aquela época, acreditar que o degradante era fruto de uma possessão por espíritos maus fazia parte de uma crença menor, menos culta e menos inteligente, religiosa e filosoficamente falando. E para os que criam assim, ser possuído era algo que fazia da pessoa possuída alguém menor, digno de ser deixado nos sepulcros. De qualquer forma aquele homem seria sempre menos e cada vez menos.

Mesmo que isso pareça um exagero interpretativo meu, parece-me que até os porcos preferiram o suicídio do que viver de uma forma tão degradante quanto aquele homem que vai se encontrar com Jesus, quando ele desce do barco. Até ali ele é menos do que o menos, tanto para judeus quanto para não judeus, tanto para cultos quanto para os menos cultos, tanto para os sociamente bem colocados (os moradores da rica cidade de Gadara) quanto para os mal colocados socialmente (os que viviam ali, nos sepulcros também).       

No entanto, apesar dos símbolos de religião e religiosidade, e de política e sociedade que Marcos e Lucas nos mostram quando colocam o gadareno e Gadara, e a legião nos porcos, e os porcos no abismo que leva a morte, para mim, Jesus vê ali apenas um homem, uma pessoa humana que precisa ser reconstruída a partir de um lugar e de um estado de destruição completa. Foi só tudo isso o que ele viu. Jesus então o liberta.   

Daí toda a vida reconstruída quer, de alguma forma, se dedicar ao reconstrutor. Isso faz parte da compreensão em entusiasmo do serviço: "quando Jesus estava entrando no barco, o homem que estivera endemoninhado suplicava-lhe que o deixasse ir com ele [...]" (verso 18). É a ideia imediata de que é preciso se dedicar de forma completa e inteira ao serviço (de Jesus, da igreja, do Reino). Nós não somos gadarenos e nem fomos possessos por uma legião de demônios, não andávamos por sepulcros, mas em muito somos parecidos com aquele sujeito que se encontra com Jesus em uma das margens do mar da Galiléia. Sua história nos faz pensar agora em nossa própria história. E subir naquele barco e seguir a Jesus seria, para ele, uma nova possibilidade de vida longe dos rochedos e sepulcros, longe de todos e todas que o colocaram de lado, longe de seu passado humilhante, marcado pela violência e pela dor causado pela possessão que o havia aprisionado todo aquele tempo. Subir no barco e seguir com Jesus também era uma forma de deixar para trás toda a dor que ele próprio causou, era uma forma de deixar as culpas no passado, de deixar o passado e todas as pessoas que lá estão no passado. Talvez fosse uma forma de fugir, ou talvez uma forma de substituir.  

Porém, diferente de outros momentos, onde Jesus diz: "vem e me segue", deixa mesmo tudo para trás, quase como se dissesse: "vamos lá construir o Reino de Deus juntos", aqui, nesse texto, a percepção é outra. Marcos diz que "Jesus não o permitiu" (verso 19), e mais, falou algo para ele que, talvez, para nós, hoje, faça um maior sentido: volta para a tua casa, para a tua família e também reconstrua o que foi destruído. Pois talvez (e esse meu talvez está carregado de muitas certezas) seja lá, dentro de casa, nas relações de família, entre você e os teus, que esteja o verdadeiro e mais precioso serviço que deva ser prestado ao Reino de Deus. O maior campo missionário do mundo é a tua casa, o lugar mais sagrado do mundo, lugar e espaço de verdadeira espiritualidade é o teu lar, as pessoas com as quais você deveria "gastar" mais tempo, mais conversas, mais brincadeiras, mais risos, mais abraços e tudo mais é com a tua família.     

Sai daqui. Sai do meu barco (mais uma vez eu exagero na minha interpretação). Volta para casa. Volta para os teus. Senta com eles. Conta a eles o que Deus fez por você, quanto ele fez e quanto ele foi misericordioso, o como ele foi misericordioso (verso 19). Sai do meu barco e volta para a sua casa, para a sua família. Pois é lá, juntos, que vocês vão falar de Deus, pensar em Deus, encontrar Deus e viver com Ele. 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Compaixão e Cuidado: João 19:25-27

Hoje, como proposto pelo tema do mês, como tema para esta noite, pensar família deixou de ser apenas uma necessidade prática de reflexão, ou, melhor dizendo, uma necessidade de reflexão prática sobre a família, do como ser família, o ser pai, o ser mãe, ser o responsável, o marido ou a mulher, ser filho ou filha, enteado ou enteada, o que ser e como ser, o lugar, o papel etc; e passou a ser uma forma de desespero ou lamento na despedida, pois, o que de fato se está falando, e esta é uma preocupação de todos e eu não estou exagerando, é sobre o fim da família. Enquanto nós estamos discutindo aqui (na igreja), ainda, o papel de cada membro da família: o pai é (ou deve ser) isso, a mãe é aquilo e os filhos são deste ou daquele jeito, lá fora, no mundo, já se está falando sobre a falência e a inexistência da família e sobre as crises que isso tem causado na sociedade como um todo. Pois com a falência da menor e da primeira das instituições, a instituição família, todas as outras ruíram juntas: o Estado, a escola, a igreja e todas as outras grandes instituições em sociedade que você possa pensar, até mesmo a ideia de globalidade, de planeta. Isto é o fim da instituição.

Talvez por isso se esteja discutindo tanto os “papéis”, como se a vida fosse como em palco de teatro ou na tela do cinema, é só acertar os papéis, as falas e as interpretações e pronto, estará tudo resolvido. Talvez também por isso se esteja falando tanto em “identidade”, a identidade da igreja, no nosso caso, a “identidade batista”, perdemos a identidade, aquilo que nos identifica, como se isso fosse uma crise só batista, ou só da igreja. Hoje, ninguém mais sabe o que é, nem mais ao que pertence, o de onde, e digo isso a partir das individualidades, pensando de pessoa em pessoa; como então não haveria crise de identidade institucional: Estado, igreja, família etc, se as pessoas não sabem mais o que elas são individualmente ou se são. Tempos atrás uma jovem no ônibus que eu também estava dizia: segunda eu vou em tal igreja, hoje eu vou em tal outra, amanhã eu vou na minha, na quinta eu vou na da minha amiga, na sexta eu vou naquela, no sábado (e isso eu já estou inventando, mas pode bem ser verdade) vou num show, no domingo volto para minha. Mas qual é a dela? Quem é ela? Qual é a sua identidade? Ela é de todas e, ao mesmo tempo, de nenhuma. Mas e na família?

Quando eu olho para a família eu não vejo uma crise de “papéis”, quem é o que e quem faz o que, o pai sustenta (é o cabeça) e a mãe educa (é a submissa), os pais mandam e os filhos obedecem. Os papéis mudam, a mãe pode trabalhar e ganhar mais do que o marido, sem nenhum problema; o marido pode ajudar nos afazeres domésticos e na educação dos filhos, também sem problema; os filhos podem participar nas decisões da casa e não só obedecer, pois dar a opinião também é sinal de respeito e obediência. Não é isso o que está destruindo a família.

De outra forma os “papéis” também mudam e mudaram no Estado, finalmente descobrimos que nem tudo é culpa do governo, nós também somos culpados de muita coisa que está ao nosso lado. Quando eu ouço alguém dizendo “ninguém faz nada...” eu já entendo que quem está dizendo já se incluiu nesse ninguém. A escola também mudou ou precisa mudar, da educação informativa para uma educação formativa. A igreja, querendo ou não, também mudou, para mal na maioria dos casos, mas também para o bem. Não foi isso o que destruiu ou está destruindo as instituições. Os papéis mudaram, as instituições continuam aí, então onde está a crise? Principalmente a crise da família, onde ela está? O que aconteceu? Como disse semanas atrás, o que aconteceu foi que alguns valores mudaram ou se perderam de forma definitiva. E na família, de forma principal, o que se perdeu foi o princípio do cuidado e da compaixão. Não são os papéis, mas o cuidado. A família entrou em crise quando passamos a pensar quase que exclusivamente em nossa individualidade e nos esquecemos do grupo, dos outros, daqueles e daquelas que dormem na mesma casa que eu. Foi quando eu deixei de enxergar os outros e passei a ver somente a mim mesmo, aí voltamos ao texto que lemos.
Em João 19:11, o princípio que a família contemporânea perdeu, já estava nos pés da cruz junto com Jesus. A Maria mãe, a Maria tia e a Maria amiga estavam lá, cuidavam, cada Maria, do filho, do sobrinho e do amigo da forma como era possível cuidar naquele momento, com a presença. Ou seja: Jesus estava sendo cuidado por elas a partir da presença delas no seu momento mais difícil, a cruz. Estar presente nos momentos de dificuldade é um princípio de cuidado. Elas estavam lá, olhando para ele antes de olharem para elas.

Depois, o próprio Jesus ensina a eles e a nós esse mesmo princípio, o princípio do cuidado: É o filho mais velho dando à mãe (ou devolvendo a ela, que já não tem mais marido, José provavelmente já morreu) o cuidado que ele não vai mais poder dar: “eis aí a sua mãe”, olhe para ela, cuide dela. É também o mestre cuidado do seu discípulo mais amado: “mãe, eis aí o teu filho”, olhe para ele, cuide dele. Isto é família: o cuidado um pelo outro, o olhar um para o outro, foi isso o que se perdeu. Quando foi que nós nos tornamos suficientemente individualistas, egoísta e cegos para os outros, a ponto de perdermos o princípio do cuidado, eu não sei. Eu só sei que se o filho ou a filha olhasse um pouco mais - coisa pouca - para os pais, para o pai e para a mãe, as coisas seriam muito diferentes dentro de casa. Eu só sei que se o marido olhasse mais para a esposa e a esposa mais para o marido, tendo o princípio do cuidado como valor no relacionamento, as coisas seriam bem diferentes dentro de casa. Eu só sei que se os pais olhassem para os filhos um pouco mais, não só para recriminar, mandar ou encaminhar, as coisas também seriam diferentes. Eu só sei que se a partir do cuidado, esse princípio que se perdeu, olhássemos mais para quem dorme na mesma casa que a gente dorme, para quem tem ou não o mesmo sangue da gente e é família nossa, as coisas seriam bem diferentes, e, certamente, não estaríamos falando de “papéis” nem de crises, mas de alegria e harmonia: “eis aí a tua mãe, eis aí o teu filho”. “Daquela hora em diante, o discípulo a recebeu em sua família”.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Quando tudo para: Marcos 05:21-30

Há aqui uma efervescência de coisas acontecendo. Jesus, segundo Marcos, acabou de curar um endemoninhado na região dos gadarenos ou gerasenos, nomes que dependem da versão dos primeiros escritores (dos manuscritos principalmente) ou também da tradução ou versão da sua Bíblia. Mas é aquela história que marcou ou que ficou marcada com o nome "gadareno", o endemoninhado gadareno. Ou ainda, de uma outra forma, uma história que ficou conhecida por conta da "legião" (verso 09), é uma multidão de demônios que possuía aquele homem, e que fora expulsa por Jesus. Também por causa dos "porcos" (versos 11ss). Os demônios entram neles (suplicam a Jesus para poder fazer isso) e eles (os porcos e os demônios) se jogam precipício abaixo (cerca de dois mil, segundo Marcos, verso 13). Algo que causa um certo alvoroço entre os moradores daquela região. Quase todos, com medo ou descontentes com aquilo, pedem a Jesus que vá embora: "Então o povo começou a suplicar a Jesus que saísse do território deles" (Marcos 05:17). Há uma única voz discordante, mas ele não pede para Jesus ficar, ele quer ir junto (verso 18). Mas não vai (verso 19). Ele vai ser a voz que vai ficar (verso 20).

Do outro lado - Jesus atravessou de barco para a outra margem, diz o verso 21 -, o alvoroço continua, de uma forma diferente, mas continua. Há uma multidão esperando por Jesus, estão todos reunidos ao redor dele enquanto ele ainda estava à beira mar. Mal desceu do barco e estavam todos lá. Mateus diz que Jesus estava sendo interrogado e respondia aos discípulos de João, o Batista, sobre a questão do "jejum" (Mateus 09:14ss). Lucas diz apenas que há uma multidão e que ela estava alegre, pois o esperavam e ele chegou (Lucas 08:40). Misturando tudo era um alvoroço. Alguns entusiasmados, alegres, ele chegou ou voltou. Outros ainda cheios de dúvidas e com muitas perguntas. Com certeza também muitos desconfiados, olhando de longe, esperando. Muitos e por muitos e diferentes motivos estavam ali. Então chega Jairo (verso 22), entre muitos, o único que recebe um nome. A filha dele está doente.

Quando Jairo chega, o alvoroço da multidão dá lugar a um outro alvoroço, o do coração dele. Ele se prostra aos pés de Jesus e clama insistentemente, diz Marcos. Aí então tudo para. As perguntas, a partir Mateus, dão lugar à voz de Jairo. O entusiasmo e a alegria, a partir de Lucas, dão lugar à voz de Jairo. O que quer que estivesse acontecendo ali deu lugar à voz de Jairo. Tudo parou. Mas não porque era Jairo, mas porque era uma oração, e toda a oração (adendo: as verdadeiras, não no sentido eclesiástico ou dogmático, mas de espírito e de sentimento) (toda oração) é uma forma de estacionar as coisas, de estacionar o tempo.   

Jesus então vai, o alvoroço volta, a multidão, o barulho, a confusão, todo mundo falando ao mesmo tempo, empurrando, pegando, puxando, falando, brigando e tudo mais que pudermos imaginar no meio da confusão da massa. Aí uma mulher, sem nome, apenas com uma história, a história que lemos: uma menstruação continua de 12 anos, sem ninguém para ajudar, mais todas as implicações que isso carregava (implicações sociais, morais, psicológicas, religiosas etc), aparece, aproxima-se e toca em Jesus, porque diz em sua mente: "se eu tão somente tocar em seu manto, ficarei curada". Aí chegamos ao verso 30, o último verso de nossa leitura. O 31 é continuação do alvoroço, do barulho, da crise e do caos: "Responderam os seus discípulos: "Vês a multidão aglomerada ao teu redor e ainda perguntas: 'Quem tocou em mim?'" É sequência do quadro que já vinha. No entanto, no 30 tudo para. O Jairo para. A multidão para. Os discípulos param. A mulher para. Jesus para. O barulho para. O tempo para. É, mais uma vez, a oração. Uma oração sem palavras ou com palavras para dentro (falava consigo mesma), feita mais em forma de gesto (o toque, que carregava em si só um enormidade de questões).

Para além e junto da mensagem contida na pessoa de Jairo e na pessoa daquela mulher, escolhidos entre muitos para que as histórias chegassem até nós, há ainda algo de belo e mágico ali: a pequena eternidade que existe dentro do tempo da oração. Pelo menos assim eu gosto de pensar. Pois, quando a gente ora, aquela oração verdadeira (como expliquei antes, de espírito e sentimento), é como se o problema, pelo menos naquele instante, deixasse de existir. É como se a necessidade se fizesse menor, e a tristeza, ou a decepção, ou a angústia, ali, naquele tempo, tempo meio eternidade, perdessem sua força. É como se o alvoroço de fora e o alvoroço de dentro, do coração da gente, cessassem. Pois é o tempo de quando se ora. Tudo o que a vida mistura, na oração, em Deus, se desmisturam. Eu não sei explicar. Só sei que é quando tudo para, e a gente pode encontrar-se com Deus. A resposta, na maioria das vezes ou em talvez em todas, quase que não importa. Pois, na oração (na verdadeira), quando tudo para, Deus é encontrado.Depois, é preciso ir para frente. "Quem tocou em meu manto?" Que do grego deveria ser traduzido para "qual mulher" me tocou?, do verso 30, também é, para mim, uma forma de continuidade, de que é preciso responder sim (muito e de muitas formas), mas também que é preciso continuar, ainda tem a filha do Jairo, ainda tem a multidão, ainda tem o alvoroço, ainda tem tudo o que virá, ainda tem muitas outras coisas por acontecer, ainda tem a vida que segue. A deles e a dela. Por isso, é preciso seguir. Pois na vida, hora ou outra é preciso parar, em verdade, fazer tudo parar (o barulho, a multidão, a crise, a luta e tudo o mais que você puder acrescentar), até o tempo. E aí entrar na pequena eternidade do momento da oração e encontrar-se com Deus. Depois, seguir. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Misturado: João 06:60-69

O capítulo seis de João é um capítulo bastante extenso, são 71 versículos. Começa - e se você puder olhar, deve fazer - com o relato da primeira multiplicação dos pães (o que vai do verso 01 ao verso 15). Depois passa, seguindo o texto escrito de João, do verso 16 ao 24, por Jesus andando sobre as águas e atravessando o mar da Galiléia, chegando novamente à sua cidade, Cafarnaum. Então chegamos aos versos 25 e 26 de João 06, onde Jesus começa um duro discurso sobre o que de fato significa segui-lo, servir a Deus, participar do Reino de Deus, entender e viver seus ensinamentos. A conversa ali era exatamente sobre isso, verso 28: "O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus requer?" (Pergunta que eu não tenho dúvida, estava carregada de um certo orgulho religioso). O assunto era esse: Como é que se serve a Deus? Como é que se segue a Deus? Como se faz para viver com ele? Como é que se participa de seu Reino? "A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou" (verso 29). Mas para crer em alguém que é enviado de Deus é preciso sinais. Mas o sinal já havia sido dado, era o pão, o pão que desce de Deus e dá a vida ao mundo (verso 33, você pode olhar). E aí, mais uma vez a barriga deles ronca: "Senhor, dá-nos sempre desse pão" (verso 34). Isso só confirma o que Jesus disse no verso 26: "A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais miraculosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos". Comeram, estavam satisfeitos, mas queriam e iriam precisar de mais.     

Aí Jesus começa um discurso metafórico, simbólico, estranho (que muitas vezes se mistura com a ideia da ceia), mas que queria dizer e estava dizendo exatamente algo sobre o que significava servir a Deus, da realização das obras de Deus (da pergunta do verso 28), e do crer em Jesus (do verso 29), o que não significava ali, naquele momento, crer na existência dele ou em quem ele dizia ser, mas crer naquilo que ele estava fazendo e dizendo, o Reino. E o discurso começa com uma frase forte: "Eu sou o pão da vida" (verso 35). Quem come desse pão não tem fome, quem come desse pão não tem sede. E todos os outros versos que seguem serão um aprofundamento disso tudo o que está sendo dito. Os ouvintes de Jesus vão rebater o que ele está dizendo, ele vai continuar falando a mesma coisa: eu sou o pão, eu sou o pão da vida, eu sou o pão vivo, eu sou o pão que desce do céu. E a coisa segue, e segue se aprofundando, chamando para mais dentro. Até que seu discurso, provavelmente no meio de toda aquele burburinho, (mais uma vez é preciso imaginar) todos falando, se explicando, perguntando e respondendo ao mesmo tempo, se apresenta de uma forma ainda mais dura: "Eu lhes digo a verdade: Se vocês não comerem a carne do Filho do homem e não beberem o seu sangue, não terão vida em si mesmos" (verso 53). Mais (verso 56): "Todo aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele". Não é apenas comer junto (ceia), comungar com ele, mas sim comungar a ele (metafórica e simbolicamente, mas é isso mesmo). É algo meio canibal, meio antropofágico, meio vampirismo (digo isso aproveitando que os vampiros estão em moda, novamente). Eu faço parte dele, e ele faz parte de mim. Comer da carne e beber do sangue é misturar-se ao Cristo. Isso é fazer a obra de Deus, isso é crer naquele que ele enviou, em Jesus. "Aquele que se alimenta de mim viverá por minha causa" (verso 57).

"Ao ouvirem isso, muitos dos seus discípulos disseram: "Dura é essa palavra. Quem pode suportá-la?"" Esse foi o primeiro verso que lemos, o verso 60. Ouvir Jesus era um coisa. Beneficiar-se de Jesus era uma outra coisa (a multiplicação). Acompanhar, ver, ouvir, tocar, perceber, aprender, ali, tudo isso tudo bem. Mas uma coisa que eles não estavam dispostos a fazer era se misturar de uma forma profunda com Jesus. Diz o verso 66: "Daquela hora em diante, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e deixaram de segui-lo".   

E vocês? "Vocês também não querem ir?" Perguntou Jesus aos doze, no verso 67. A resposta do apóstolo Pedro, que parece ser a resposta de quase todos eles, dos doze, é uma resposta de quem já se envolveu demais: "Senhor, para quem iremos nós?" (verso 68). Jesus não é apenas o preenchimento da existência deles, mas é também esvaziamento dessa mesma existência. Ele esvaziou as possibilidades. Não há outros caminhos, não há outras vozes, não há outros lugares. A resposta de Pedro, se imaginarmos mais, não tem entusiasmo. Carrega um pouco de um quase desabafo. É a resposta de alguém que também entendeu a dureza das palavras de Jesus, mas cuja experiência, vida e envolvimento com ele, senhor daquelas palavras, não permite outra possibilidade, a não ser a de ficar ali. Pedro não foi porque não tinha para onde ir (nem para quem). Se tivesse um outro onde ou um outro quem, ele teria feito igual. Estaria junto com quem foi embora. Mas seus sonhos já eram outros, sua esperança já era outra, seu caminho já era outro, seus valores já eram outros, sua vida já era outra. Envolvimento em profundidade é isso. Comer a carne e beber o sangue, a metáfora usada por Jesus, começa aí. É ter ele como parte em mim, e me fazer parte ou presente nele. Misturado. Pedro, por fim confessa: "Tu tens as palavras de vida eterna. Nós cremos e sabemos que és o Santo de Deus" (versos 68-69). 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Pequenino Rebanho: Lucas 12:22-34

O texto que acabamos de ler, Lucas 12:22-34, certamente é muito mais conhecido e famoso dentro do evangelho de Mateus, como parte do que se acostumou a chamar de "Sermão da Montanha". Não só como parte, mas como conclusão do "Sermão". Até porque em Mateus, e isso é o que parece em princípio, as palavras lidas aqui em Lucas entram num contexto de ensinamentos sobre a vida dentro do Reino de Deus, é como se houvesse um seguimento de ideias e reflexões (e há) que iriam levar até ali e fechar com a frase "busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas" (Mateus 06:33). Já Lucas, para criar uma sequência lógica para os versos que acabamos de ler, coloca o texto logo depois da Parábola do "Rico Insensato", que vê na acumulação de recursos a segurança para a vida, o que se mostra (ou vai se mostrar na continuidade do texto) como algo contrário à vida dentro do Reino de Deus. Na Parábola há uma preocupação excessiva, no ensinamento de Jesus há um "não se preocupem" como início da fala. É um contraponto.

Todavia, tanto Lucas como Mateus, enquanto escritores daquilo que foi dito por Jesus, independentemente de onde tenham alocado o texto, as palavras, sabiam muito bem que aquilo que fora dito por Jesus fazia parte uma compreensão nova sobre uma nova possibilidade de se ver a vida em suas preocupações e ansiedades. "Dirigindo-se aos seus discípulos" (assim diz Lucas no verso 22) e também à multidão (assim diz Mateus) Jesus já sabia quais eram suas preocupações de vida e anseios de existência. Suas palavras, então, seguem nessa direção. 

E aí a gente começa a pensar em toda aquela gente ao redor de Jesus (discípulos e/ou multidão) ouvindo inicialmente (pela primeira vez) essas palavras. Gente que estava ali por muitos motivos, mas talvez e principalmente por verem em Jesus, em sua proposta, em seu discurso sobre o Reino, uma possibilidade real de mudança de vida, de realidade de vida, onde preocupações, necessidades e anseios pudessem ser supridos, principalmente de uma forma miraculosa, imediata, como já havia acontecido e vinha acontecendo. Estão ali não só porque querem, mas porque precisam estar. São gente, e gente precisa de coisas, e as coisas ali são roupa e comida (para tanto é preciso entender o contexto de Jesus, dos discípulos e da multidão). Para eles, o básico da vida ou o tudo da vida. Eles e elas se preocupam, anseiam por isso. Precisam, em verdade. Comida e roupa, por mais básico que isso seja (ou parece ser), era o centro de todas as preocupações daquela gente, gente da Galiléia de Jesus, que nem isso tinha para viver. Aquilo era o mínimo e o máximo ao mesmo tempo. Ali não eram apenas olhos e ouvidos atentos, eram olhos e ouvidos famintos. Jesus sabe disso. E sabe hoje também.

Certamente nós não precisamos de roupa e comida, não de uma forma tão desesperada como eles. Mas temos também nossas preocupações, necessidades e anseios de vida e existência. E estamos aqui hoje não apenas porque queremos, mas porque precisamos estar. Algo sempre nos falta e estamos na busca desse algo. Principalmente agora, um tempo de começo de realização de planos e sonhos. Somos iguais a eles e elas, somos gente. Gente igual e agora ouvindo a mesma coisa. E aí dá para pensar, aquela gente toda lá (e aqui também), sentada, em pé, agachada, encostada em alguma coisa, esperando alguma coisa de Jesus, vinda dele, feita ou falada por ele. E eu não sei, talvez não fosse aquilo, não fossem aquelas palavras: "não se preocupem com a sua própria vida". Como deixar de se preocupar com aquilo que nos ocupa de forma tão forte, que às vezes até nos angustia, as nossas necessidades e anseios? O negócio é até bonito, as aves do céus e os lírios do campo, mas a realidade é outra. É algo até desejável, não se preocupar, mas a questão era outra: como? Isso é o centro da coisa: precisar, se preocupar e buscar. E Jesus ainda acrescenta: "busquem (sim) o Reino de Deus" (verso 31).

Talvez, muitos daqueles e daquelas que estavam ali nesse primeiro momento, ficaram tristes ou decepcionados com aquelas palavras, pois elas eram o contrário de suas expectativas e suas esperanças, não atingiam suas necessidades, não supriram, não mudaram. E isso, em nada, os tornou menor, pois, preocupar-se não é um mal, nem algo feio, nem pecado, é algo profundamente e essencialmente humano. É coisa de gente. É da gente essa coisa e essa insistência de lutar com a vida para fazer dela melhor. Outros talvez se sentiram angustiados por conta da impossibilidade de viver aquilo de forma real, apesar de desejarem ardentemente por aquelas verdades, viver aquelas palavras. Estavam ali transitando entre a compreensão da necessidade, das coisas da vida, e o anseio pelos ensinamentos de Jesus, o Reino de Deus. Talvez estivessem até pensando: é bonito, mas dá medo. Imaginem só: "não se preocupar". Legal, mas irreal. A vida nem sempre nos permite isso. Mas Jesus também sabe disso. Compreende não só e muito bem a necessidade humana, o precisar das coisas, como também o sentimento humano, o nosso sentimento. E suas palavras também vão nessa direção.

Isso está apenas em Lucas, e aqui eu gosto de imaginar (mesmo que seja meio fantasia minha). Jesus deve ter dito tudo o que disse, deve ter visto todos os olhares e imaginado todos os pensamentos de todos ali (e aqui também). Tudo ainda estava no ar: "não se preocupem", "as aves do céus" (Deus cuida delas), "os lírios" (Deus as veste), "busquem o Reino de Deus em primeiro lugar", a roupa, a comida, os pagãos que buscam essas coisas. Estava tudo pairando no ar: palavras, olhos, pensamentos, sentimentos. Ele deve ter parado, deve ter respirado (talvez fundo), deve ter sorrido (um sorriso leve) e depois dito: "não tenham medo". Mas não disse só assim, disse com carinho, carinho misturado a cuidado: "não tenham medo, meu pequeno rebanho", em outras versões: "meu pequenino rebanho".

Se fosse para desejar algo para você hoje, no nosso ano que começa, eu desejaria um ano sem ansiedades, sem preocupações, mas e principalmente sem medo. Pois as aves do céus continuam aí, os lírios também, e o Reino de Deus, e o Cristo, que continua sendo o nosso pastor, de nós, seu pequenino rebanho.