Se há um livro
bíblico que se possa chamar de predileto, esse livro, para mim, é o livro de Eclesiastes.
Eu tenho um certa paixão por ele. Posso dizer que é uma afinidade maior, uma
coisa mais próxima, até mesmo de identificação. Por isso, pelo menos um vez por
ano, principalmente no final do ano, um tempo onde a gente começa a pensar na
vida, nas realizações (que se fizeram ou não) e naquilo que se espera do futuro
(enquanto projeto, enquanto sonho), eu sento para ler as palavras do sábio ou
do poeta, ou do sábio poeta (a mistura dos dois). E gosto dele por algumas
razões. Primeiro porque ele é poético, poético-bíblico, mas um pouco diferente
da poesia dos salmos ou dos provérbios, que possuem uma preocupação mais
devocional, no caso dos salmos, ou mais ético moral, no caso provérbios. Ele tem
uma forma literária própria, gostosa de se ler e de se pensar enquanto se lê.
Também porque, entre todos os livros bíblicos ele é o mais secular, não possui
uma preocupação religiosa ou teológica muito pesada, apesar de sua profundidade
na forma como vê Deus e como vê a relação desse Deus com a pessoa humana, e da
pessoa humano com esse Deus. Por fim, gosto dele, enquanto livro, porque ele
não rodeia para falar sobre a vida, a vida, nele, é como é e ponto.
Aí a gente chega
aqui, no texto que lemos, uma poesia sobre o tempo e a vida. E o primeiro verso
nos joga para um lógica confusa sobre o que se estabelece como
"propósito". Diz ele: "Para tudo há uma ocasião certa; há um
tempo certo para cada propósito debaixo do céu: [...]". Como se tudo o que
acontece acontecesse a partir de uma determinação preestabelecida (a redundância
é importante aqui) não apenas num antes, mas num antes que esteja fora do
tempo, como se tudo fosse controlado por uma vontade divina ou por um destino.
Acontece porque tem que acontecer, aconteceu porque tinha que acontecer,
acontecerá porque tem que acontecer. Como se tudo o que acontece tivesse uma
data, um tempo onde o que tem que ser será, e a gente, como gente, pessoa
humana, não possuísse uma forma de escapar disso.
No entanto,
eclesiastes não possui uma compreensão de predeterminação ou de destino. Não
necessariamente. O que ele está talvez dizendo, quando diz que há um tempo para
cada propósito, e não um propósito para cada tempo, é que a vida, de forma
simples, clara e objetiva, seja, de fato, assim mesmo: para cada coisa ou para
todas as coisas uma ocasião. E isso não é destino, é condição, é a vida. É só o
tempo. É só a vida. É simplesmente assim, e disso nós também não podemos fugir.
Você e eu não podemos fugir da contingência da vida. Nem de seus momentos
ambíguos, diferentes, contraditórios: nascer ou morrer, plantar ou arrancar,
matar ou curar, derrubar ou construir, chorar ou rir, prantear ou dançar,
espalhar ou ajuntar, abraçar ou se conter, procurar ou desistir, guardar ou
jogar fora, rasgar ou costurar, calar ou falar, amar ou odiar, lutar ou viver
em paz. Tudo tem seu tempo dentro da vida. Cada um de nós vai viver, em algum
momento, uma dessas situações, vamos transitar entre uma e outra, cada qual em
seu próprio tempo. Quando a coisa for para chorar, será o tempo de chorar,
quando a coisa for para rir, será o tempo de rir. Quando a coisa for para
procurar, será o tempo de procurar, quando for para desistir, será o tempo de
desistir. E assim de igual forma em tudo aquilo que ele nos apresenta, o tempo
e o propósito. E a vida segue. E a gente segue, ora rasgando, ora costurando,
ora guardando, ora jogando fora. Mesmo que sem parar muito para pensar nisso,
mesmo que sem ter tempo para refletir sobre isso.
Daí o sábio
poeta chama isso de fardo: "tenho visto
o fardo que Deus impôs aos homens" (verso
10). E repete no verso 09 aquilo que ele diz por
quase todo o seu livro, de uma forma diferente, mas é isto: todo o esforço é
inútil: "O que ganha o trabalhador com todo o seu esforço?"
Nada. Ele nada pode acrescentar ou mudar. Pois, para cada propósito há seu
tempo: "Ele fez tudo apropriado ao seu tempo" (verso 11). E mais,
Deus colocou no coração do homem a eternidade (ainda o verso 11), talvez para
tê-la como contraponto do tempo, mostrar que o pouco aqui é insignificante
diante do que é eterno. O que passamos aqui é nada diante da eternidade que não
passa. Algo muito perto daquilo que o apóstolo Paulo diz em Romanos 8:18:
"Considero que os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a
glória que em nós será revelada". E o sábio poeta continua: "mesmo
assim ele (nós) não compreendemos inteiramente o que Deus fez" (ainda
verso 11).
De certa forma, olhando dessa perspectiva, é tudo
tão pequeno, mas continua sendo a vida. É tudo tão rápido, mas continua sendo a
vida. É tudo tão sem sentido, mas continua sendo a vida (a minha vida e a sua
vida). Ontem eu estava calado, mas hoje estou falando. Amanhã posso estar
amando e logo depois odiando. Agora quero paz, mas antes queria a luta. Tudo é
apenas uma questão de propósito e tempo. Posso chorar um noite inteira, e
sorrir pela manhã. Tudo possui seu tempo. O negócio então talvez esteja em
saber qual é agora o tempo. Olhar para a vida da gente (da gente enquanto
pessoa e da gente enquanto comunidade) e fazer uma leitura do tempo. Olhar e
perguntar: que momento é agora? Qual tempo? Responder a essa pergunta sem
euforia ou sem desespero é sinal de amadurecimento de vida. Responder a essa
pergunta cheio de esperança, mas consciente do caminho é sinal de maturidade
espiritual. Responder a essa pergunta sem medo é se saber e se ver pronto,
pronto para a vida e para qualquer tempo. É chegar ao verso 12, o último verso
lido, e entender a vida: "Descobri que não há nada melhor para o homem
(para cada um de nós) do que ser feliz (independente do tempo) e praticar o bem
enquanto vive (independente do tempo)".
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