O gadareno ou geraseno, isso
conforme a tradução ou conforme a tradição do texto original, carrega em sua
história - uma dramática história - uma gama de relações religiosas, de
símbolos religiosos, sociais e culturais que saltam ao texto, e que, mesmo numa
leitura rápida, já nos fazem começar a pensar e querer saber. Nesse sentido e
nesse primeiro momento há muitas informações que podem enriquecer nossa
compreensão do que aconteceu ali, e mais, enriquecer e, ao mesmo tempo, nos
fazer, de uma forma melhor, compreender (em seus símbolos) os significados do
que aconteceu ali.
O que é dito por Marcos é
simples, Jesus e os discípulos, depois de atravessarem a experiência do mar que
é acalmado nos versos 35-41 do capítulo 04, encontram, no que é chamado de
região dos gerasenos ou gadarenos, um sujeito endemoninhado. E o que se percebe
pela leitura do texto e por pesquisas posteriores é que ali é uma região de
não-judeus (eles criam porcos, e judeus, religiosamente falando, consideram os
porcos animais imundos). É gente que faz parte de um mundo e de uma forma de se
relacionar com a divindade bem diferente daqueles e daquelas que fazem parte do
mundo judeu de Jesus e de seus discípulos. De forma mais simples: são gente de
uma outra religião. E isso é importante saber quando chegamos a Gadara (verso
01). Eles não são a gente, apesar deles estarem aqui junto com a gente e a
gente aqui junto com eles.
Quando Jesus desembarca, diz
Marcos, vem até ele um homem com um espírito imundo vindo dos sepulcros (verso
02), da morte, ou melhor, dos mortos. Não apenas dos mortos mortos, morridos
mesmo, mas daqueles e daquelas que já haviam morrido para toda a sociedade, mas
que, por uma questão de vida, insistiam em viver. Gente que não prestava mais,
doentes, moribundos, excluídos, prostitutas etc, os párias da sociedade, gente
miserável demais para poder viver junto com aqueles e aquelas que se julgavam
comuns, normais. Aquele sujeito em comum, vem dali, ele vive ali (verso 03). Já
foi preso, mas não adiantou. "Ninguém era forte para prendê-lo", diz
o texto (verso 04). Ele vivia gritando, noite e dia, e estava, de pouco em
pouco, se matando, se cortava com pedras, as mesmas pedras dos sepulcros e das colinas
(verso 05). E ele tinha demônios, uma legião (o que é uma clara alusão a Roma e
seus exércitos que dominavam a quem não tinham o direito de dominar). E mesmo
para aquela época, acreditar que o degradante era fruto de uma possessão por
espíritos maus fazia parte de uma crença menor, menos culta e menos
inteligente, religiosa e filosoficamente falando. E para os que criam assim,
ser possuído era algo que fazia da pessoa possuída alguém menor, digno de ser
deixado nos sepulcros. De qualquer forma aquele homem seria sempre menos e cada
vez menos.
Mesmo que isso pareça um
exagero interpretativo meu, parece-me que até os porcos preferiram o suicídio
do que viver de uma forma tão degradante quanto aquele homem que vai se
encontrar com Jesus, quando ele desce do barco. Até ali ele é menos do que o
menos, tanto para judeus quanto para não judeus, tanto para cultos quanto para
os menos cultos, tanto para os sociamente bem colocados (os moradores da rica
cidade de Gadara) quanto para os mal colocados socialmente (os que viviam ali,
nos sepulcros também).
No entanto, apesar dos
símbolos de religião e religiosidade, e de política e sociedade que Marcos e
Lucas nos mostram quando colocam o gadareno e Gadara, e a legião nos porcos, e
os porcos no abismo que leva a morte, para mim, Jesus vê ali apenas um homem,
uma pessoa humana que precisa ser reconstruída a partir de um lugar e de um
estado de destruição completa. Foi só tudo isso o que ele viu. Jesus então o
liberta.
Daí toda a vida reconstruída
quer, de alguma forma, se dedicar ao reconstrutor. Isso faz parte da
compreensão em entusiasmo do serviço: "quando Jesus estava entrando no
barco, o homem que estivera endemoninhado suplicava-lhe que o deixasse ir com
ele [...]" (verso 18). É a ideia imediata de que é preciso se dedicar de
forma completa e inteira ao serviço (de Jesus, da igreja, do Reino). Nós não
somos gadarenos e nem fomos possessos por uma legião de demônios, não andávamos
por sepulcros, mas em muito somos parecidos com aquele sujeito que se encontra
com Jesus em uma das margens do mar da Galiléia. Sua história nos faz pensar
agora em nossa própria história. E subir naquele barco e seguir a Jesus seria,
para ele, uma nova possibilidade de vida longe dos rochedos e sepulcros, longe
de todos e todas que o colocaram de lado, longe de seu passado humilhante,
marcado pela violência e pela dor causado pela possessão que o havia
aprisionado todo aquele tempo. Subir no barco e seguir com Jesus também era uma
forma de deixar para trás toda a dor que ele próprio causou, era uma forma de
deixar as culpas no passado, de deixar o passado e todas as pessoas que lá
estão no passado. Talvez fosse uma forma de fugir, ou talvez uma forma de
substituir.
Porém, diferente de outros
momentos, onde Jesus diz: "vem e me segue", deixa mesmo tudo para
trás, quase como se dissesse: "vamos lá construir o Reino de Deus
juntos", aqui, nesse texto, a percepção é outra. Marcos diz que "Jesus
não o permitiu" (verso 19), e mais, falou algo para ele que, talvez, para
nós, hoje, faça um maior sentido: volta para a tua casa, para a tua família e
também reconstrua o que foi destruído. Pois talvez (e esse meu talvez está
carregado de muitas certezas) seja lá, dentro de casa, nas relações de família,
entre você e os teus, que esteja o verdadeiro e mais precioso serviço que deva
ser prestado ao Reino de Deus. O maior campo missionário do mundo é a tua casa,
o lugar mais sagrado do mundo, lugar e espaço de verdadeira espiritualidade é o
teu lar, as pessoas com as quais você deveria "gastar" mais tempo,
mais conversas, mais brincadeiras, mais risos, mais abraços e tudo mais é com a
tua família.
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