segunda-feira, 20 de maio de 2013

Volta para o teus: Marcos 05:01-20

O gadareno ou geraseno, isso conforme a tradução ou conforme a tradição do texto original, carrega em sua história - uma dramática história - uma gama de relações religiosas, de símbolos religiosos, sociais e culturais que saltam ao texto, e que, mesmo numa leitura rápida, já nos fazem começar a pensar e querer saber. Nesse sentido e nesse primeiro momento há muitas informações que podem enriquecer nossa compreensão do que aconteceu ali, e mais, enriquecer e, ao mesmo tempo, nos fazer, de uma forma melhor, compreender (em seus símbolos) os significados do que aconteceu ali.

O que é dito por Marcos é simples, Jesus e os discípulos, depois de atravessarem a experiência do mar que é acalmado nos versos 35-41 do capítulo 04, encontram, no que é chamado de região dos gerasenos ou gadarenos, um sujeito endemoninhado. E o que se percebe pela leitura do texto e por pesquisas posteriores é que ali é uma região de não-judeus (eles criam porcos, e judeus, religiosamente falando, consideram os porcos animais imundos). É gente que faz parte de um mundo e de uma forma de se relacionar com a divindade bem diferente daqueles e daquelas que fazem parte do mundo judeu de Jesus e de seus discípulos. De forma mais simples: são gente de uma outra religião. E isso é importante saber quando chegamos a Gadara (verso 01). Eles não são a gente, apesar deles estarem aqui junto com a gente e a gente aqui junto com eles.

Quando Jesus desembarca, diz Marcos, vem até ele um homem com um espírito imundo vindo dos sepulcros (verso 02), da morte, ou melhor, dos mortos. Não apenas dos mortos mortos, morridos mesmo, mas daqueles e daquelas que já haviam morrido para toda a sociedade, mas que, por uma questão de vida, insistiam em viver. Gente que não prestava mais, doentes, moribundos, excluídos, prostitutas etc, os párias da sociedade, gente miserável demais para poder viver junto com aqueles e aquelas que se julgavam comuns, normais. Aquele sujeito em comum, vem dali, ele vive ali (verso 03). Já foi preso, mas não adiantou. "Ninguém era forte para prendê-lo", diz o texto (verso 04). Ele vivia gritando, noite e dia, e estava, de pouco em pouco, se matando, se cortava com pedras, as mesmas pedras dos sepulcros e das colinas (verso 05). E ele tinha demônios, uma legião (o que é uma clara alusão a Roma e seus exércitos que dominavam a quem não tinham o direito de dominar). E mesmo para aquela época, acreditar que o degradante era fruto de uma possessão por espíritos maus fazia parte de uma crença menor, menos culta e menos inteligente, religiosa e filosoficamente falando. E para os que criam assim, ser possuído era algo que fazia da pessoa possuída alguém menor, digno de ser deixado nos sepulcros. De qualquer forma aquele homem seria sempre menos e cada vez menos.

Mesmo que isso pareça um exagero interpretativo meu, parece-me que até os porcos preferiram o suicídio do que viver de uma forma tão degradante quanto aquele homem que vai se encontrar com Jesus, quando ele desce do barco. Até ali ele é menos do que o menos, tanto para judeus quanto para não judeus, tanto para cultos quanto para os menos cultos, tanto para os sociamente bem colocados (os moradores da rica cidade de Gadara) quanto para os mal colocados socialmente (os que viviam ali, nos sepulcros também).       

No entanto, apesar dos símbolos de religião e religiosidade, e de política e sociedade que Marcos e Lucas nos mostram quando colocam o gadareno e Gadara, e a legião nos porcos, e os porcos no abismo que leva a morte, para mim, Jesus vê ali apenas um homem, uma pessoa humana que precisa ser reconstruída a partir de um lugar e de um estado de destruição completa. Foi só tudo isso o que ele viu. Jesus então o liberta.   

Daí toda a vida reconstruída quer, de alguma forma, se dedicar ao reconstrutor. Isso faz parte da compreensão em entusiasmo do serviço: "quando Jesus estava entrando no barco, o homem que estivera endemoninhado suplicava-lhe que o deixasse ir com ele [...]" (verso 18). É a ideia imediata de que é preciso se dedicar de forma completa e inteira ao serviço (de Jesus, da igreja, do Reino). Nós não somos gadarenos e nem fomos possessos por uma legião de demônios, não andávamos por sepulcros, mas em muito somos parecidos com aquele sujeito que se encontra com Jesus em uma das margens do mar da Galiléia. Sua história nos faz pensar agora em nossa própria história. E subir naquele barco e seguir a Jesus seria, para ele, uma nova possibilidade de vida longe dos rochedos e sepulcros, longe de todos e todas que o colocaram de lado, longe de seu passado humilhante, marcado pela violência e pela dor causado pela possessão que o havia aprisionado todo aquele tempo. Subir no barco e seguir com Jesus também era uma forma de deixar para trás toda a dor que ele próprio causou, era uma forma de deixar as culpas no passado, de deixar o passado e todas as pessoas que lá estão no passado. Talvez fosse uma forma de fugir, ou talvez uma forma de substituir.  

Porém, diferente de outros momentos, onde Jesus diz: "vem e me segue", deixa mesmo tudo para trás, quase como se dissesse: "vamos lá construir o Reino de Deus juntos", aqui, nesse texto, a percepção é outra. Marcos diz que "Jesus não o permitiu" (verso 19), e mais, falou algo para ele que, talvez, para nós, hoje, faça um maior sentido: volta para a tua casa, para a tua família e também reconstrua o que foi destruído. Pois talvez (e esse meu talvez está carregado de muitas certezas) seja lá, dentro de casa, nas relações de família, entre você e os teus, que esteja o verdadeiro e mais precioso serviço que deva ser prestado ao Reino de Deus. O maior campo missionário do mundo é a tua casa, o lugar mais sagrado do mundo, lugar e espaço de verdadeira espiritualidade é o teu lar, as pessoas com as quais você deveria "gastar" mais tempo, mais conversas, mais brincadeiras, mais risos, mais abraços e tudo mais é com a tua família.     

Sai daqui. Sai do meu barco (mais uma vez eu exagero na minha interpretação). Volta para casa. Volta para os teus. Senta com eles. Conta a eles o que Deus fez por você, quanto ele fez e quanto ele foi misericordioso, o como ele foi misericordioso (verso 19). Sai do meu barco e volta para a sua casa, para a sua família. Pois é lá, juntos, que vocês vão falar de Deus, pensar em Deus, encontrar Deus e viver com Ele. 

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