Talvez por conta da profissão que me segue faz muitos anos, quase tudo
na minha forma de imaginar ou pensar, até mesmo nas reflexões mais abstratas, eu
tenha a mania de transformar tudo em imagem. Quase tudo vira "quadro"
- em retrato - ou uma "cena", com seus cortes, diferentes tomadas e
uma linguagem própria, teatralmente construída. É assim que eu leio as coisas.
E Lucas 07, a narrativa evangélica que acabamos de ler, possui, de certa
forma, uma "imagem" extremamente forte. Jesus, conforme o texto, está
se dirigindo a uma cidade chamada Naim, em verdade um vilarejo muito pobre
alguns poucos quilômetros ao sul da cidade de Nazaré. Diz ainda o texto que
Jesus, seus discípulos e uma multidão (talvez umas 40 ou 50 pessoas ao todo, talvez
um pouco mais ou um pouco menos) de repente, no caminho, se depara com uma
outra multidão, com um número talvez bem parecido com a multidão que segue a
Jesus, mas, de forma diferente, ela vem em cortejo, e é um cortejo fúnebre, o
filho único de uma viúva está sendo levado para o seu enterro, diz Lucas.
Esta foi a cena: o encontro das duas multidões seu deu na porta da
cidade (verso 12). Era tudo muito rústico, muito pobre, muito cheio de poeira,
muito cheio de gente simples, de gente comum, com jeito de sertão, gente sem
muitas perspectivas de vida, sem muita vida, todo mundo, talvez todo mundo da
cidade estava ali. E eles se encontram, as duas multidões.
Anos atrás eu trabalhei com uma moça que na época estudava cinema, ela
era jornalista mas estudava para uma possível pós-graduação em cinema, e uma
vez ela me disse que o que é quase padrão em qualquer filme é que primeiro se
mostra o quadro todo, e ali este era o quadro todo: um monte de gente
encontrando um outro monte de gente dentro do contexto que eu já descrevi.
Depois, como prática, depois da cena aberta, se fecha nos detalhes: rostos,
expressões, objetos importantes, imagens que vão começar a contar a estória, e
ali a história era a de uma mulher viúva que levava seu único filho, em
cortejo, para o fim final. Era um drama, uma tragédia. Uma mulher que ficaria
sozinha, perdeu o marido, e agora perdia o filho. E ela não poderia fazer mais
nada a não ser cumprir com o seu papel determinado: sofrer sua dor, chorar suas
lágrimas e enterrar seu filho. Não havia mais esperança, não havia mais o que
esperar.
Mas o que talvez a gente não saiba - ou não se atenha - é que a cena de
Naim era uma cena mais do que comum nas periferias do mundo de Jesus, a
desconstrução ou a descontinuidade da família por conta da morte. Não era apenas
uma mera semelhança. Era a vida real. E hoje, talvez não mais por conta da
morte, apenas, de algo tão extremo e pesado como na narrativa de Lucas, tão no
limite, o que se assemelha é, também num talvez, a desconstrução e a
descontinuidade da família, não mais tão dramática, mas mesmo assim ainda
trágica. Na vida de muita gente lá fora e de muita gente aqui dentro os
cortejos de descontinuidade da vida em família seguem seu passo, um passo largo
que conduz ao mesmo fim final, da mesma forma, do mesmo jeito, com personagens
diferentes, mas ainda assim dentro do mesmo roteiro. Por muitos e outros motivos,
ainda hoje e da mesma forma, a vida e a vida em família perdem a sua
continuidade.
No entanto, em Naim há uma outra personagem que aquela mulher não
contava que iria aparecer. Ela seguiria, assim como muitas outras mulheres e
mães, o caminho comum, o caminho normal a ser seguido naquela situação. Mas
alguém aparece e mostra a ela lá e a nós aqui outras possibilidades.
Possibilidades e implicações. Possibilidades para a vida em família e
implicações para a comunidade de fé. E aqui eu começo a concluir minhas imagens
nesse texto.
2 comentários:
Muito bom !
Muito bom !
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