Há aqui uma efervescência de coisas acontecendo. Jesus,
segundo Marcos, acabou de curar um endemoninhado na região dos gadarenos ou
gerasenos, nomes que dependem da versão dos primeiros escritores (dos
manuscritos principalmente) ou também da tradução ou versão da sua Bíblia. Mas
é aquela história que marcou ou que ficou marcada com o nome
"gadareno", o endemoninhado gadareno. Ou ainda, de uma outra forma,
uma história que ficou conhecida por conta da "legião" (verso 09), é
uma multidão de demônios que possuía aquele homem, e que fora expulsa por
Jesus. Também por causa dos "porcos" (versos 11ss). Os demônios
entram neles (suplicam a Jesus para poder fazer isso) e eles (os porcos e os
demônios) se jogam precipício abaixo (cerca de dois mil, segundo Marcos, verso
13). Algo que causa um certo alvoroço entre os moradores daquela região. Quase
todos, com medo ou descontentes com aquilo, pedem a Jesus que vá embora:
"Então o povo começou a suplicar a Jesus que saísse do território
deles" (Marcos 05:17). Há uma única voz discordante, mas ele não pede para
Jesus ficar, ele quer ir junto (verso 18). Mas não vai (verso 19). Ele vai ser
a voz que vai ficar (verso 20).
Do outro lado - Jesus atravessou de barco para a outra
margem, diz o verso 21 -, o alvoroço continua, de uma forma diferente, mas
continua. Há uma multidão esperando por Jesus, estão todos reunidos ao redor
dele enquanto ele ainda estava à beira mar. Mal desceu do barco e estavam todos
lá. Mateus diz que Jesus estava sendo interrogado e respondia aos discípulos de
João, o Batista, sobre a questão do "jejum" (Mateus 09:14ss). Lucas
diz apenas que há uma multidão e que ela estava alegre, pois o esperavam e ele
chegou (Lucas 08:40). Misturando tudo era um alvoroço. Alguns entusiasmados,
alegres, ele chegou ou voltou. Outros ainda cheios de dúvidas e com muitas
perguntas. Com certeza também muitos desconfiados, olhando de longe, esperando.
Muitos e por muitos e diferentes motivos estavam ali. Então chega Jairo (verso
22), entre muitos, o único que recebe um nome. A filha dele está doente.
Quando Jairo chega, o alvoroço da multidão dá lugar a um
outro alvoroço, o do coração dele. Ele se prostra aos pés de Jesus e clama
insistentemente, diz Marcos. Aí então tudo para. As perguntas, a partir Mateus,
dão lugar à voz de Jairo. O entusiasmo e a alegria, a partir de Lucas, dão
lugar à voz de Jairo. O que quer que estivesse acontecendo ali deu lugar à voz
de Jairo. Tudo parou. Mas não porque era Jairo, mas porque era uma oração, e
toda a oração (adendo: as verdadeiras, não no sentido eclesiástico ou
dogmático, mas de espírito e de sentimento) (toda oração) é uma forma de
estacionar as coisas, de estacionar o tempo.
Jesus então vai, o alvoroço volta, a multidão, o barulho, a
confusão, todo mundo falando ao mesmo tempo, empurrando, pegando, puxando,
falando, brigando e tudo mais que pudermos imaginar no meio da confusão da
massa. Aí uma mulher, sem nome, apenas com uma história, a história que lemos:
uma menstruação continua de 12 anos, sem ninguém para ajudar, mais todas as
implicações que isso carregava (implicações sociais, morais, psicológicas,
religiosas etc), aparece, aproxima-se e toca em Jesus, porque diz em sua mente:
"se eu tão somente tocar em seu manto, ficarei curada". Aí chegamos
ao verso 30, o último verso de nossa leitura. O 31 é continuação do alvoroço,
do barulho, da crise e do caos: "Responderam
os seus discípulos: "Vês a multidão aglomerada ao teu redor e ainda
perguntas: 'Quem tocou em mim?'" É sequência do quadro que já vinha. No
entanto, no 30 tudo para. O Jairo para. A multidão para. Os discípulos param. A
mulher para. Jesus para. O barulho para. O tempo para. É, mais uma vez, a
oração. Uma oração sem palavras ou com palavras para dentro (falava consigo
mesma), feita mais em forma de gesto (o toque, que carregava em si só um
enormidade de questões).
Para além e junto da mensagem contida na pessoa de Jairo e
na pessoa daquela mulher, escolhidos entre muitos para que as histórias
chegassem até nós, há ainda algo de belo e mágico ali: a pequena eternidade que
existe dentro do tempo da oração. Pelo menos assim eu gosto de pensar. Pois,
quando a gente ora, aquela oração verdadeira (como expliquei antes, de espírito
e sentimento), é como se o problema, pelo menos naquele instante, deixasse de
existir. É como se a necessidade se fizesse menor, e a tristeza, ou a decepção,
ou a angústia, ali, naquele tempo, tempo meio eternidade, perdessem sua força.
É como se o alvoroço de fora e o alvoroço de dentro, do coração da gente,
cessassem. Pois é o tempo de quando se ora. Tudo o que a vida mistura, na
oração, em Deus, se desmisturam. Eu não sei explicar. Só sei que é quando tudo
para, e a gente pode encontrar-se com Deus. A resposta, na maioria das vezes ou
em talvez em todas, quase que não importa. Pois, na oração (na verdadeira),
quando tudo para, Deus é encontrado.Depois, é preciso ir para frente. "Quem tocou em meu
manto?" Que do grego deveria ser traduzido para "qual mulher" me
tocou?, do verso 30, também é, para mim, uma forma de continuidade, de que é
preciso responder sim (muito e de muitas formas), mas também que é preciso
continuar, ainda tem a filha do Jairo, ainda tem a multidão, ainda tem o
alvoroço, ainda tem tudo o que virá, ainda tem muitas outras coisas por
acontecer, ainda tem a vida que segue. A deles e a dela. Por isso, é preciso
seguir. Pois na vida, hora ou outra é preciso parar, em verdade, fazer tudo
parar (o barulho, a multidão, a crise, a luta e tudo o mais que você puder
acrescentar), até o tempo. E aí entrar na pequena eternidade do momento da
oração e encontrar-se com Deus. Depois, seguir.
Um comentário:
"Pois, na oração (na verdadeira), quando tudo para, Deus é encontrado.Depois, é preciso ir para frente."
Bela reflexão, que Deus continue o abençoando professor, abraços.
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