domingo, 15 de julho de 2012

Espírito: I Ts 05:12-24

(Reflexão feita na Igreja Batista de Barão Geraldo no dia 15 de julho de 2012)

Em novembro do ano passado eu esbocei uma pequena reflexão (um texto em forma de pastoral, em verdade) a partir do texto bíblico que aqui foi proposto, o texto lido, I Tessalonicenses 05:12-24. Mas lá, de forma principal e quase que específica, a ideia estava sobre o verso 19: “Não apaguem o Espírito”, o que não deixará de ser também aqui a preocupação. O texto, o de novembro, bem curto, ficou apenas no blog, e ainda está lá. No entanto, a leitura que faço hoje, um pouco mais extensa, por conta da oportunidade, é um tempo maior para pensar, dá-me a possibilidade de aprofundar um pouco mais aquilo que comecei a pensar - nesse texto especificamente - em novembro do ano que passou, o que acabou se tornando e tem se tornado cada vez, para mim, hoje, um caminho em possibilidade de pensar o ser cristão. E é por aqui que eu começo.

É o fim da primeira carta do apóstolo Paulo aos cristãos que estão na cidade de Tessalônica. E como em qualquer carta, no seu final, Paulo, o escritor, vai delinear uma despedida, é o fim da carta. Mas essa despedida vai carregar ainda um tom de aconselhamento, quase o mesmo tom que segue toda a carta. No verso 12, o começo da despedida da carta, ele fala: “agora lhes pedimos”, e daí seguem todos os conselhos que são dados: “vivam em paz”, “advirtam”, “auxiliem”, “sejam pacientes”, “tenham cuidado”, “alegrem-se sempre”, “orem continuamente”, “dêem graças” etc. E ainda inclui o verso 19: “Não apaguem o Espírito”. E se seguirmos cada um dos versos, em cada pequena frase, em cada pequeno conselho - que se parecem mais com ordens -, vemos muito claramente que o apóstolo está profundamente preocupado com o caminho da igreja de Tessalônica. E o que ele quer de fato ainda falar, mesmo no final da carta, é como a igreja deve ser, mais ainda, o como cada um dos membros da igreja de Cristo deve se comportar. É um tipo de faça isso e não faça aquilo de uma importância muito grande para a igreja de Jesus, a ponto de podermos dizer que se a igreja não vive assim, enquanto comunidade, ela mal pode se chamar de igreja. Pois em cada um desses breves conselhos está contido quase que a essência daquilo que podemos dizer ser o cristianismo, o seu espírito. É o básico na sua profundidade: paz, compromisso, cuidado, paciência, alegria, espiritualidade, gratidão... está tudo ali, está tudo ali na despedida da carta de Paulo.                

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Porém, mesmo que esteja tudo ali, e esteja de forma compreensível - não é uma questão de entendimento, de filosofia, de teologia, de reflexão profunda, é algo prático, é vivo, é para o dia-a-dia, e só não se vive assim quando não se quer, é uma questão de escolha, e certamente é mais simples não querer, escolher o outro lado. Mesmo que esteja tudo ali claro como o dia, para chegar aqui e dizer é assim e pronto, o que mais me chama a atenção continua sempre sendo o verso 19: “Não apaguem o Espírito”. Pois, dentre todos os conselhos que estão na despedida da carta, esse parece ser o único que não nós é claro. É curto e difícil. Talvez porque, em primeiro lugar, não exista nada que complete a frase. Não há um adjetivo, Santo - o que facilitaria em muito a nossa compreensão. Também não há um complemento, de Deus. E ainda, erroneamente nossas bíblias colocam a palavra espírito em maiúsculo, como que apontando para a interpretação de que o espírito que não deve ser apagado é o Espírito Santo de Deus. Mas o texto, a carta, a despedida, os conselhos, tudo ali não parece apontar para isso. Talvez seja só se perguntar: o que seria forte o suficiente ou grande o suficiente para apagar Deus. Algumas traduções trazem extinguir. Depois, não há nada que explique o como. Como é que se apaga o espírito? O que será que eu faço ou deixo de fazer que vá acarretar no apagamento do espírito? Paulo não diz “não apaguem o Espírito” fazendo isso, ou fazendo aquilo, ou aquilo outro. Não, não há explicações. Só há a curta e rápida fala: “Não apaguem o Espírito”. Só isso. Assim: “não apaguem o Espírito”.   

E talvez tudo isso aconteça simplesmente porque nossa grande dificuldade esteja no fato de que quando lemos “espírito” na Bíblia, de que ele precisa ser ou estar vinculado a alguém. O Espírito precisa sempre ser, e é. E quando é, é sempre mais. Você já ouviu falar do espírito da coisa? Toda coisa é a coisa mesma sempre. Mas seu espírito é mais. É o espírito da coisa. Quer um exemplo? A amizade. A amizade enquanto coisa será sempre amizade. Quando é espírito, é mais, é proximidade, é estar junto, é conhecer e se dar a conhecer. Amor é sempre e será sempre amor enquanto coisa, já enquanto espírito é mais, é gesto. A vida, mais um exemplo, enquanto vida, é apenas coisa biológica, enquanto espírito, a vida é força, é pulsão, é coragem, é energia, é algo mais. E aí a gente começa a entender Paulo, eu acho.

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Toda coisa é a coisa em si, e sempre será a coisa. Mas tem também o espírito da coisa, que é mais do que a coisa. E tem também o fato de que é possível ser a coisa sem nunca conhecer seu espírito. Paulo foi metafórico, e eu vou manter a metáfora, e dizer: é possível viver a coisa, e, ao mesmo tempo, matar (ou apagar, seguindo Paulo) seu espírito. De pouco em pouco, devagar, paulatinamente a coisa vai se tornando mais importante, vai tomando espaço, se fazendo mais forte, e, como que de repente, o espírito se apaga.           

Paulo sabe o que está dizendo, pois está dizendo para a igreja, está dizendo para cada membro da igreja de Tessalônica, está falando do como ser comunidade cristã, comunidade reunida por fé, está falando da essencialidade cristã, está falando do que entende como mais do que importante, está falando do que é ser, do ser cristão, do ser do cristianismo. Cada um daqueles conselhos, repetidos metodicamente pela carta e na despedida dela, faz parte disso. Não é apenas estar lá (ou aqui), é viver em profundidade aquilo que é proposto. Não é a coisa, é o espírito da coisa. E Paulo também sabe que tudo isso (ou tudo aquilo) pode (ou poderia) se perder simplesmente pelo fato do espírito ser apagado. Aí a gente começa a entender a razão do verso 19: “não apaguem o espírito”. Pois quando o espírito se apaga, mesmo com a coisa ainda lá, a essência já se foi. É a coisa sem seu espírito. Dentro daquilo que Paulo está falando, é a igreja sem seu espírito, é o cristianismo sem seu espírito, é o homem e a mulher cristã sem o espírito cristão. É a coisa vazia. Viver em paz sem a essencialidade da paz é algo vazio. Advertir, auxiliar, ser paciente e ter cuidado a partir de uma lógica de obrigatoriedade é vazio. Não faz parte daqui de dentro, do espírito. Está fora, é apenas coisa. Alegra-se, orar e dar graça (ou louvar, ou adorar) sem verdade, sem espírito (João 04:23-24) também é vazio. Os verdadeiros adoradores que adoram em espírito e em verdade. É também muito daquilo que Jesus diz em Mateus 12:07, que está lá em Oséias 06:06, é misericórdia (literalmente aquilo que faz as tripas tremer, coisa do espírito) que se quer e não o holocausto (literalmente a tripa oferecida enquanto coisa). Mas Paulo continua consciente, o espírito não pode ser apagado.

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Pois às vezes, muitas vezes, as coisas da vida tiram da gente o calor da própria vida. E são muitas as coisas que podem fazer o espírito se apagar. Aí talvez a gente comece a entender o espírito da coisa. Pode ser porque tudo se tornou duro demais, rígido demais e as coisas quando ficam assim perdem a leveza, não conseguem queimar. É o pai que se torna pai e continua sendo pai pela obrigação de ser pai, ou é a mãe que se torna mãe pela obrigação de ser mãe e segue assim. Pode ser também porque tudo deu errado e não dá mais para voltar, começar outra vez, e refazer. É preciso continuar sendo porque não dá mais tempo de ser outra coisa. E aí você continua sendo esposa por ser esposa, continua sendo marido por ser marido. Fazer o quê? Também pode ser por decepção. Foi o emprego que eu não consegui. Foi a faculdade que eu não consegui passar ou terminar. Foram meus pais que não me entenderam. Foi a igreja que se esqueceu. Foi Deus que não agiu quando deveria. Foi a vida que só me deu motivos para a decepção. E o espírito se apaga, ficando só a coisa. Aí eu vou lá para o trabalho e trabalho. Vou para casa e fico lá em casa. Faço o curso que estou fazendo e apreendo. Venho aqui e canto, oro, ouço alguém falar um monte de coisa que parece nem ser deste mundo, converso com as pessoas depois do culto e no outro domingo eu volto. É a coisa pela coisa em si, sem espírito. Talvez por isso Paulo tenha insistido: “não apaguem o espírito”. Pois é o espírito que cria o mais, ele é sempre mais. É o mais da vida que falta à vida. É o que é fogo, queima, arde e cria continuidade, impulsiona a gente para frente, com sentidos, razões e sentimentos. É o que preenche, é o que completa, é o que torna tudo inteiro, é a coisa junto com seu espírito, é a igreja vivida enquanto Reino de Deus, é o cristianismo feito evangelho (de fato, de verdade), é o ser cristão tendo o espírito de Cristo, é a vida feita coragem. E Paulo diz: “não apaguem o espírito”.

Eu sei que a vida às vezes torna tudo frio, torna o fogo em brasa, a brasa em carvão quente, o carvão quente e madeira estéril. Sei que às vezes o que sobra são apenas as cinzas de um tempo que já foi. Mesmo assim, “não apaguem o espírito”, que quando é, é sempre mais. 

2 comentários:

Laurencie disse...

Olá amigo Clademilson...
Você tem o dom de ver o espírito das coisas, ver além, ver mais profundo.
Seus textos e reflexões são especiais.
Valeu.
Abraços
Lau

Clademilson Paulino disse...

Obrigado Lau,

primeiro pelo comentário, depois pela oportunidade de estar na sua comunidade, refletindo junto. Valeu mesmo...

Um forte abraço.