domingo, 8 de julho de 2012

Reencontro e Reconciliação: Salmo 42:11


(Reflexão feita na Igreja Batista de Barão Geraldo no dia 08 de julho de 2012)

Depois da leitura do Salmo 42, texto do qual lemos apenas o verso 11, percebemos muito rapidamente que esse salmo é um salmo muito parecido com alguns de seus irmãos textuais, como o Salmo 23, por exemplo: “o Senhor é o meu pastor e nada me faltará”; ou como o Salmo 37, outro exemplo: “entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele fará”; e também o Salmo 91, para citar apenas mais um: “aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente, descansará”. E eles são muito parecidos mesmo. Mas não apenas porque são salmos, porque possuem a mesma forma de escrita, são poéticos, fazem parte de uma mesma classe literária bíblica. Não apenas porque trabalham com o mesmo tema: a condição humana e a relação humana, dentro dessa condição, com Deus. Mas são muito parecidos porque são especialmente muito lidos. São famosos. É pouco provável que haja alguém aqui que nunca os tenha visto. Entre os que lêem, talvez sejam os mais lidos. Entre os citados, os mais citados. E, certamente, como amuletos (e eu não digo isso de forma pejorativa), os mais usados: o salmo 23 em cima da geladeira, o 91 em cima da estante, o 37 na cabeceira da cama, e todos eles em quadros, representações, pinturas, releituras etc.

E assim, por serem os mais lidos, são também os mais próximos, e nessa proximidade toda a leitura se torna sempre pessoal, e cada uma das releituras se torna uma leitura nova para um tempo que é sempre presente. Não é mais o salmista que escreveu, não é mais a vida dele e nem o Deus dele. Sou eu quem lê e reescreve, é a minha vida e o meu Deus. Ora sou eu quem caminha no vale da sombra da morte (23), ora sou eu quem vê mil caindo de um lado e dez mil do outro (91), ora sou eu quem não tem outra opção que não entregar a vida a Deus e esperar que ele faça (37). É a minha leitura, é o meu tempo e a minha vida, é o meu Deus, é o meu Salmo. Por todas essas razões, eu sei que assim que a gente acaba de ler um salmo com o 42, o que acabamos de ler, a leitura já foi feita, não só do texto, o que seria óbvio, mas também do texto para a vida e da vida para a relação com Deus. E é por aqui que eu começo a ler esse salmo. Minha intenção é apenas compartilhar a minha leitura de hoje.

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“Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim?” Por duas vezes o salmista repete essa sentença que parece ser a representação de seu tempo, do seu aqui e agora, mas lá. E a perturbação da segunda parte, perturbação da alma, é a reafirmação em paralelo da tristeza da primeira parte. É simplesmente a vida, e para ele, naquele momento, ela está sendo pesada, muito pesada, pesada mesmo. Mas até aí tudo bem, a gente até entende. A vida, às vezes, tem muito de triste e muito de perturbador. É assim mesmo. Mas o que mais incomoda é o solilóquio do salmista. A alma está triste, perturbada, porque está sendo difícil, é um tempo difícil, é um momento difícil. Mas por que ele fala consigo mesmo? Por que ele está falando sozinho?

De vez em quando a gente fala sozinho mesmo. É uma forma de auto-refletir, de pensar quem eu sou, o que tenho feito, o que tem acontecido, pensar para onde estou indo, para onde é possível ir, o que tenho feito, o que devo fazer etc. E isso, de certa forma, é uma necessidade minha para comigo mesmo, de ter um tempo meu para pensar em mim e sobre mim. É também, ou poderia ser, uma forma de auto-ajuda, de um conflito meu, de uma discussão minha, de uma ação minha para mim mesmo. Falar sozinho é, às vezes, tentar se ajudar. Mas isso carrega também um pouco de loucura. E é, às vezes, de loucura que mais se carece para enfrentar a vida. Só mesmo sendo meio doido para desdoidar a realidade da gente. Só mesmo sendo meio maluco para enfrentar o que tem que ser enfrentado e sobreviver, e viver, e ser e continuar sendo. Na loucura de falar sozinho talvez esteja a maior das sanidades. Um meio de escapar de tudo, de se encontrar e de se fazer. No entanto, falar sozinho pode ser algo muito mais simples do que a loucura ou a auto-reflexão. Pode ser algo tão simples como a própria solidão. “Solidão é a gente demais”, diz Guimarães Rosa. O salmista está só, por isso fala sozinho. Não há com quem falar. Não há ninguém que lhe bata nos ombros e diga: porque você está triste? É ele mesmo quem precisa dizer isso. É dele o seu próprio braço forte, é dele o seu próprio ombro amigo, é dele a sua própria fala de conforto e ânimo. Ele fala sozinho porque está sozinho e pronto. Não é auto-reflexão e nem loucura, é simplesmente solidão. E logo ele, aquele que ia com a multidão, mas não vai mais (verso 04). Ele que sabia Deus, e agora não consegue responder a pergunta: “onde está o seu Deus?” (verso 03 e 10). Não é mais só solidão de gente, é solidão de certezas, é solidão de sentidos, é solidão de sentimentos. É um esvaziamento. É anseio (01), é sede (02), é desejo (08), é angústia (10). E nada disso tem fim. Não há mais nem Deus.

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No entanto, o salmista tem ainda uma outra percepção: “Ponha a sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei [...]”. É uma percepção do futuro. De um tempo que não é o seu tempo presente, é um tempo que ainda há de vir. Um tempo futuro que vai fazer ele voltar para o passado, e ser igual a um tempo quando tudo era melhor e diferente, ou diferente, por isso melhor. E aí já se pode idealizar que o tempo onde eu vou louvar a Deus é o tempo quando Ele vai agir em meu favor. É o tempo da benção. É o tempo da vitória. É o tempo em que vou poder olhar para a vida e finalmente dizer: venci. E esse tempo está lá, no futuro. Quando a mesa vai estar preparada por Deus na presença dos meus inimigos (salmo 23), quando o meu cálice estará transbordando, não só cheio, mas transbordando. E eu vou me sentir vingado. E vou dizer para os que eram e se fizeram meus inimigos (09): “Tá vendo? Eu venci!” E vou dizer para aqueles que eram meus amigos e me abandonaram: “eu não precisa de vocês, pois Deus estava comigo”. E eu vou me sentir importante (cabeça ungida com óleo (23)), vou me sentir protegido (mil dum lado e dez mil do outro, e eu em pé (91)), pois Deus já não mais fará, pois estará fazendo (37). Mais ainda, vou poder dizer para mim mesmo em um outro monólogo, menos pesado e menos dramático: “Ele é o meu Salvador e o meu Deus”. Será o tempo em que o que precisa acontecer vai acontecer.

Mas esse tempo é sempre lá, é sempre depois, é sempre amanhã, é sempre futuro. Aí o salmista diz: “quando?” (verso 03: “Quando poderei entrar para apresentar-me a Deus?”). Pois esse tempo parece que nunca chega. E não é esse o único salmo que reclama disso. Diz Davi no Salmo 13, verso 01: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto?” E não são só os salmistas que reclamam disso, esse “quando” está nos livros dos sábios (Jó), nos profetas: “Até quando, Senhor, clamarei por socorro, sem que tu ouças? Até quando gritarei a ti: “Violência!” sem que tragas salvação?” (Habacuque 01:02), nos evangelhos, nas primeiras esperanças eclesiásticas: “é neste tempo Senhor [...]”? (Atos 01:06), e por onde mais você olhar na Bíblia. E ele está também na vida da gente, nas nossas orações, na nossa angústia, na nossa leitura da vida e na nossa busca por Deus, de quem queremos ajuda, de quem queremos um palavra de resposta, a quem ansiamos louvar por alguma coisa conseguida. Assim é o tempo de todos, assim é a reflexão de todos, assim é o “quando” de todos. Mesmo assim, ainda o louvarei. Porque talvez esse tempo que espero não seja um tempo, um tempo que está lá fora, me esperando, mas um tempo aqui, em mim, dentro. Não na vida, mas na minha leitura dela. Não no que é alcançável, mas naquilo que já está aqui. Não na espera, mas na esperança. Não no ter, mas no ser. Pois a solidão (o maior problema do salmista e talvez o nosso) não se cura com vitória e benção. A solidão se cura com reencontro e reconciliação. 

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Espera em Deus, pois eu ainda o louvarei, compreensão final do salmista, que ainda é uma fala para si mesmo, não necessariamente é um tempo futuro que deva ser esperado, tempo que vai ser alcançado no momento em que o que eu mais necessito finalmente seja dado. Eu ainda o louvarei, não é, e não precisa ser, necessariamente, um tempo, lá na frente, futuro, um quando. Eu ainda o louvarei pode ser um estado de espírito, que não se alcança no quando, no tempo, mas sim no como, no espírito, no como eu vejo a vida, no como eu me comporto diante da vida e de suas especificidades, no como eu me vejo e vejo a Deus. Não é um tempo a ser esperado, mas um estado a ser alcançado. Não é vitória e benção (não necessariamente), é reencontro e reconciliação, é diálogo entre o salmista e Deus.

Quando lemos o salmo 42, de seu primeiro verso ao último, encontramos um sujeito que, assim como a gente, vive, sofre e se angustia. Vemos um sujeito profundamente só por conta da vida, assim como cada um de nós se sente só quando vive um momento difícil. Mas vemos principalmente um sujeito que busca incessantemente por uma voz que não seja a sua, pois já se faz cansado de falar sozinho, por auto-reflexão, por loucura ou por pura solidão. Ele quer e precisa de uma voz que não seja a sua. E sua última frase é a expressão desse desejo, pois louvar a Deus, antes de qualquer coisa, é responder a voz de Deus. Louvar a Deus é reatar algo que estava quebrado, a simples conversa. Louvar a Deus é reconhecer sua presença, mesmo e apesar da vida. Louvar a Deus se torna um “quando” onde ele não precisará mais falar a si mesmo, mas voltará a ter aquele companheiro que sempre teve, que a ele sempre falou e a quem a ele sempre ouviu, aquele que é braço forte, ombro amigo, voz e ouvido, o seu Deus. Da mesma forma, o nosso “espera em Deus pois ainda o louvarei” passa também por aqui, por essa nova forma de ser diante da vida, que levanta a cabeça sem a ideia da espera, e parte para a esperança madura que busca pelo fim da dor na presença amiga dos amigos, na presença amiga da comunidade de fé, na presença amiga de Deus. Reencontro e reconciliação, simples assim. Mas como eu disse no começo, assim como em todos os outros salmos, esta é apenas mais uma leitura, a minha, no meu momento, compartilhada agora. Que Deus nos abençoe.  

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